Este espaço se propõe a reunir material sobre loucura e todo o aparato que a envolve. Espaço para memória, videos, leituras, noticias e tudo o mais que nos cair em mãos em nossa tarefa diária de pensar sobre o tema.Também postaremos materiais que, ainda que não se relacionem diretamente com o tema, esclarecem o pensamento de autores importantes para se chegar lá. Doiduras, maluquices, vesânias de toda sorte serão bem vindas.

22 de dez. de 2014

Yayoi Kusama

Yayoi Kusama: Minha arte é uma expressão da minha vida, sobretudo da minha doença mental, originário das alucinações que eu posso ver. Traduzo as alucinações e imagens obsessivas que me atormenta em esculturas e pinturas. Todos os meus trabalhos em pastel são os produtos da neurose obsessiva e, portanto, intrinsecamente ligado à minha doença. Eu crio peças, mesmo quando eu não vejo alucinações, no entanto.Com o tempo, passou a preencher pisos, paredes, telas, objetos e até pessoas com seus pontos." (retirado  da wikipédia)

A obra Narcissus garden Inhotim (2009), pode ser encontrada no Centro Cultural Inhotim, em MG.

11 de set. de 2014

Máquinas de sofrer

   Fotos do antigo Hospital Colônia de Barbacena   
  de Luiz Alfredo/O Cruzeiro











Conto de Guimarães Rosa


O conto “Sorôco, sua mãe, sua filha”,  do livro “Primeiras Estórias” (1962), de Guimarães Rosa, fala de um trem com grades na janela que “ia servir para levar duas mulheres, para longe, para sempre”: a mãe e a filha, ambas com problemas mentais, de um homem viúvo chamado Sorôco. O “trem de doido” existiu de verdade: ele cruzava o interior do país levando os loucos para o manicômio denominado Colônia, em Barbacena MG., o maior do Brasil – e o cenário de um terrível genocídio que durou décadas. Mais de 60 mil pessoas morreram ali. Os  loucos desembarcavam nos fundos do hospital, onde o guarda-freios desconectava o último vagão. 


Sorôco, sua mãe, sua filha
                  
                                                de Guimarães Rosa

AQUELE carro parara na linha de resguardo, desde a véspera, tinha vindo com o expresso do Rio, e estava lá, no desvio de dentro, na esplanada da estação. Não era um vagão comum de passageiros, de primeira, só que mais vistoso, todo novo. A gente reparando, notava as diferenças. Assim repartido em dois, num dos cômodos as janelas sendo de grades, feito as de cadeia, para os presos. A gente sabia que, com pouco, ele ia rodar de volta, atrelado ao expresso dai de baixo, fazendo parte da composição. Ia servir para levar duas mulheres, para longe, para sempre. O trem do sertão passava às 12h45m.

As muitas pessoas já estavam de ajuntamento, em beira do carro, para esperar. As pessoas não queriam poder ficar se entristecendo, conversavam, cada um porfiando no falar com sensatez, como sabendo mais do que os outros a prática do acontecer das coisas. Sempre chegava mais povo - o movimento. Aquilo quase no fim da esplanada, do lado do curral de embarque de bois, antes da guarita do guarda- chaves, perto dos empilhados de lenha. Sorôco ia trazer as duas, conforme. A mãe de Sorôco era de idade, com para mais de uns setenta. A filha, ele só tinha aquela. Sorôco era viúvo. Afora essas, não se conhecia dele o parente nenhum.

A hora era de muito sol - o povo caçava jeito de ficarem debaixo da sombra das árvores de cedro. O carro lembrava um canoão no seco, navio. A gente olhava: nas reluzências do ar, parecia que ele estava torto, que nas pontas se empinava. O borco bojudo do telhadilho dele alumiava em preto. Parecia coisa de invento de muita distância, sem piedade nenhuma, e que a gente não pudesse imaginar direito nem se acostumar de ver, e não sendo de ninguém. Para onde ia, no levar as mulheres, era para um lugar chamado Barbacena, longe. Para o pobre, os lugares são mais longe.

O Agente da estação apareceu, fardado de amarelo, com o livro de capa preta e as bandeirinhas verde e vermelha debaixo do braço. - "Vai ver se botaram água fresca no carro... " - ele mandou. Depois, o guarda-freios andou mexendo nas mangueiras de engate. Alguém deu aviso: "Eles vêm!... " Apontavam, da Rua de Baixo, onde morava Sorôco. Ele era um homenzão, brutalhudo de corpo, com a cara grande, uma barba, fiosa, encardida em amarelo, e uns pés, com alpercatas: as crianças tomavam medo dele; mais, da voz, que era quase pouca, grossa, que em seguida se afinava. Vinham vindo, com o trazer de comitiva.

Aí, paravam. A filha - a moça - tinha pegado a cantar, levantando os braços, a cantiga não vigorava certa, nem no tom nem no se-dizer das palavras - o nenhum. A moça punha os olhos no alto, que nem os santos e os espantados, vinha enfeitada de disparates, num aspecto de admiração. Assim com panos e papéis, de diversas cores, uma carapuça em cima dos espalhados cabelos, e enfunada em tantas roupas ainda de mais misturas, tiras e faixas, dependuradas - virundangas: matéria de maluco. A velha só estava de preto, com um fichu preto, ela batia com a cabeça, nos docementes. Sem tanto que diferentes, elas se assemelhavam.

Sorôco estava dando o braço a elas, uma de cada lado. Em mentira, parecia entrada em igreja, num casório. Era uma tristeza. Parecia enterro. Todos ficavam de parte, a chusma de gente não querendo afirmar as vistas, por causa daqueles transmodos e despropósitos, de fazer risos, e por conta de Sorôco - para não parecer pouco caso. Ele hoje estava calçado de botinas, e de paletó, com chapéu grande, botara sua roupa melhor, os maltrapos. E estava reportado e atalhado, humildoso. Todos diziam a ele seus respeitos, de dó. Ele respondia: - "Deus vos pague essa despesa... "
O que os outros se diziam: que Sorôco tinha tido muita paciência. Sendo que não ia sentir falta dessas transtornadas pobrezinhas, era até um alívio. Isso não tinha cura, elas não iam voltar, nunca mais. De antes, Sorôco agüentara de repassar tantas desgraças, de morar com as duas, pelejava. Dai, com os anos, elas pioraram, ele não dava mais conta, teve de chamar ajuda, que foi preciso. Tiveram que olhar em socorro dele, determinar de dar as providências de mercê. Quem pagava tudo era o Governo, que tinha mandado o carro. Por forma que, por força disso, agora iam remir com as duas, em hospícios. O se seguir.

De repente, a velha se desapareceu do braço de Sorôco, foi se sentar no degrau da escadinha do carro. - "Ela não faz nada, seo Agente... " - a voz de Sorôco estava muito branda: - "Ela não acode, quando a gente chama... " A moça, ai, tornou a cantar, virada para o povo, o ao ar, a cara dela era um repouso estatelado, não queria dar-se em espetáculo, mas representava de outroras grandezas, impossíveis. Mas a gente viu a velha olhar para ela, com um encanto de pressentimento muito antigo - um amor extremoso. E, principiando baixinho, mas depois puxando pela voz, ela pegou a cantar, também, tomando o exemplo, a cantiga mesma da outra, que ninguém não entendia. Agora elas cantavam junto, não paravam de cantar.
Aí que já estava chegando a horinha do trem, tinham de dar fim aos aprestes, fazer as duas entrar para o carro de janelas enxequetadas de grades. Assim, num consumiço, sem despedida nenhuma, que elas nem haviam de poder entender. Nessa diligência, os que iam com elas, por bem-fazer, na viagem comprida, eram o Nenêgo, despachado e animoso, e o José Abençoado, pessoa de muita cautela, estes serviam para ter mão nelas, em toda juntura. E subiam também no carro uns rapazinhos, carregando as trouxas e malas, e as coisas de comer, muitas, que não iam fazer míngua, os embrulhos de pão. Por derradeiro, o Nenêgo ainda se apareceu na plataforma, para os gestos de que tudo ia em ordem. Elas não haviam de dar trabalhos.

Agora, mesmo, a gente só escutava era o acorçôo do canto, das duas, aquela chirimia, que avocava: que era um constado de enormes diversidades desta vida, que podiam doer na gente, sem jurisprudência de motivo nem lugar, nenhum, mas pelo antes, pelo depois.

Sorôco. Tomara aquilo se acabasse. O trem chegando, a máquina manobrando sozinha para vir pegar o carro. O trem apitou, e passou, se foi, o de sempre.
Sorôco não esperou tudo se sumir. Nem olhou. Só ficou de chapéu na mão, mais de barba quadrada, surdo - o que nele mais espantava. O triste do homem, lá, decretado, embargando-se de poder falar algumas suas palavras. Ao sofrer o assim das coisas, ele, no oco sem beiras, debaixo do peso, sem queixa, exemploso. E lhe falaram: - "O mundo está dessa forma... "Todos, no arregalado respeito, tinham as vistas neblinadas. De repente, todos gostavam demais de Sorôco.
Ele se sacudiu, de um jeito arrebentado, desacontecido, e virou, pra ir-s'embora. Estava voltando para casa, como se estivesse indo para longe, fora de conta.
Mas, parou. Em tanto que se esquisitou, parecia que ia perder o de si, parar de ser. Assim num excesso de espírito, fora de sentido. E foi o que não se podia prevenir: quem ia fazer siso naquilo- Num rompido - ele começou a cantar, alteado, forte, mas sozinho para si - e era a cantiga, mesma, de desatino, que as duas tanto tinham cantado. Cantava continuando.

A gente se esfriou, se afundou - um instantâneo. A gente... E foi sem combinação, nem ninguém entendia o que se fizesse: todos, de uma vez, de dó do Sorôco, principiaram também a acompanhar aquele canto sem razão. E com as vozes tão altas! Todos caminhando, com ele, Sorôco, e canta que cantando, atrás dele, os mais de detrás quase que corriam, ninguém deixasse de cantar. Foi o de não sair mais da memória. Foi um caso sem comparação.

A gente estava levando agora o Sorôco para a casa dele, de verdade. A gente, com ele, ia até aonde que ia aquela cantiga.

                        Óleo sobre tela "Sorôco, sua mãe, sua filha" de Alberto Messias Estanislau
                       Inspirado na obra de Guimarães Rosa

1 de abr. de 2014

Como se fabricam crianças loucas







Eliane-Brum Regina-Vogue1


Os manicômios não são passado, são presente. Uma pesquisa realizada no hospital psiquiátrico Pinel, em São Paulo, mostra que, mesmo depois das novas diretrizes da política de saúde mental no Brasil, crianças e adolescentes continuaram a ser trancados por longos períodos, muitas vezes sem diagnóstico que justificasse a internação, a mando da Justiça. Conheça a história de Raquel: 1807 dias de confinamento. E de José: 1271 dias de segregação. Ambos tiveram sua loucura fabricada na primeira década deste século

Em uma noite de novembro de 2007, a psicóloga Flávia Blikstein escutou de uma menina duas perguntas. E descobriu que não tinha respostas. Flávia trabalhava num Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) infantil, em São Paulo, e encontrava-se na ambulância para levar a garota para sua primeira internação psiquiátrica. Maria, como aqui será chamada, tinha 14 anos. Era negra, alta e magra. Falava pouco, frases curtas. Gostava de brincar de boneca e de desenhar. Às vezes pintava as unhas, arrumava o cabelo, anunciando a adolescência. Maria se molhava o tempo todo, em pequenos rituais. Abria a torneira, fazia uma conchinha com as mãos e molhava os pés, as pernas, os braços. Fazia isso em qualquer lugar, causando vergonha à mãe. Talvez Maria estivesse esculpindo com a água os limites do próprio corpo. Quando fez a primeira pergunta à Flávia, ela ainda tinha as pontas dos dedos úmidas, e o seu olhar também era molhado:
- Por que eu vou ficar aqui?
Flávia descobriu que não tinha resposta.
Maria fez então a segunda pergunta:
- Quem tá aí? Quem vai dormir no quarto comigo?
Flávia descobriu que não tinha resposta também para essa. Não tinha resposta porque, ao contrário do que costuma acontecer quando crianças e adolescentes nos mostram a face do abismo, ela tinha escutado as perguntas. Escutado mesmo. A “menina louca” tinha indagado sobre a estrutura do Estado e da sociedade que a obrigava a dar o primeiro passo para dentro de uma instituição psiquiátrica. Talvez Maria intuísse que esse passo poderia ser longo. Talvez Maria adivinhasse que os dentes do sistema estavam à sua espera, logo ali.
Flávia abraçou Maria. E pediu desculpas por não saber responder. Maria entrou, carregando olhos molhados e pontos de interrogação.
A “menina louca” tinha indagado sobre a estrutura do Estado e da sociedade que a obrigava a dar o primeiro passo para dentro de uma instituição psiquiátrica
O que Maria perguntou à Flávia, perguntou a todos nós: por que, no século 21, crianças e adolescentes brasileiros, a maioria filhos de famílias pobres, continuam a ter suas vidas mastigadas num hospital psiquiátrico. A “criança louca” fez aos normais a pergunta mais lúcida: por que a condenavam a uma existência de manicômio. A habitar um mundo de dor, vagando entre paredes, desvestindo a si mesma para vestir um uniforme, sem direito ao desejo. Por que lhe negavam a humanidade tão cedo.
Flávia não pôde esquecer as perguntas, menos ainda a sua falta de respostas. Dedicou-se a buscá-las. Encontrou-as no arquivo do Núcleo da Infância e da Adolescência (NIA) do Centro de Atenção Integrada em Saúde Mental (CAISM) Philippe Pinel. O Pinel é uma das instituições de referência para internação de crianças e adolescentes com problemas mentais no estado de São Paulo. Flávia sabia que aquilo que se costuma chamar de arquivo morto era bem vivo. Então, botou-o para falar. Fechou-se na pequena sala bordada de estantes durante todos os sábados de um ano inteiro. Analisou 451 casos, correspondentes a 611 internações ocorridas entre janeiro de 2005 e dezembro de 2009. Destes, 79% das crianças e adolescentes haviam sido internados apenas uma vez. Os 21% restantes tiveram de duas a sete reinternações. Alguns casos, que continuaram a voltar ao Pinel, ela acompanhou também nos anos de 2010 e 2011. Flávia queria saber qual era o percurso que levava crianças e adolescentes ao hospital psiquiátrico como primeira providência – e não como exceção pontual e por tempo determinado.
O arquivo do Pinel ficava logo abaixo da enfermaria das crianças e adolescentes. Enquanto pesquisava, Flávia podia ouvir os gritos. Percebeu, porém, que mais do que gritos havia um silêncio longo. Um silêncio, nas suas palavras, “estranho e profundo, um silêncio que não imaginamos num lugar cheio de crianças e adolescentes”. Dentro do arquivo, não. Os prontuários contavam histórias. Ainda que a voz de meninos e meninas ressoasse mais nas ausências, nas entrelinhas, os prontuários diziam de infâncias aniquiladas numa vida de manicômio. E mostravam por que caminhos a fabricação de crianças loucas é uma verdade profunda do Brasil. Flávia chamava o arquivo de “sala das almas”. E as almas falavam.
Duas crianças, que se transformaram em adolescentes no hospital psiquiátrico, contaram histórias que poderiam ilustrar livros escabrosos sobre os manicômios do passado, mas que se passaram na primeira década desse século. Aqui, elas serão chamadas de José e de Raquel. José permaneceu confinado por 1271 dias – ou três anos e cinco meses. Raquel, por 1807 dias. Ficou trancada dos 11 aos 16 anos – e de lá foi transferida para outra instituição psiquiátrica. José e Raquel estavam segregados no Pinel, a mando da Justiça, sob reiterados protestos da equipe técnica. Foram depositados como coisas no Pinel porque ainda é este o destino dado a crianças como eles no Brasil.
Por quê?
Flávia sabia que aquilo que se costuma chamar de arquivo morto era bem vivo. Então, botou-o para falar. Analisou 451 casos, correspondentes a 611 internações ocorridas entre janeiro de 2005 e dezembro de 2009
É preciso prestar muita atenção às respostas que Flávia encontrou. Sua escuta de três mil horas dentro do arquivo transformou-se numa dissertação de mestrado em psicologia social na Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo. Somando-se a trabalhos fundamentais de outros pesquisadores do tema, tanto em São Paulo como em vários estados do Brasil, a investigação mostra por que os manicômios persistem apesar das diretrizes da política de saúde mental e do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). A Lei nº 10.216, de 2001, orientada pela reforma psiquiátrica, prioriza o atendimento em rede, em serviços inseridos na comunidade, perto da família, e determina que a internação só pode ocorrer depois de esgotados todos os recursos extra-hospitalares. Não é o que acontece em casos demais.
“Medievais”, “desumanos” e “criminosos”. Essas são algumas das palavras usadas para definir os hospícios desde que a luta antimanicomial se intensificou a partir do final dos anos 1970 e conquistou avanços significativos nesse século. A pesquisa mostra, porém, que mesmo instituições e profissionais que tentam fazer diferente são seguidamente vencidos pelas engrenagens e pela escassez de serviços públicos de base. Na prática, ainda hoje, é de manicômio e de vida manicomial que se trata em uma parte significativa dos casos, uma realidade só possível pelo descaso quase absoluto da sociedade com o destino dessas crianças, em geral filhas de famílias pobres. Ao fazer o arquivo morto falar, Flávia constrói respostas que precisam ser escutadas se quisermos, de fato, estancar o crime de fabricar crianças loucas – e, muitas vezes, também o de conseguir enlouquecê-las.
Raquel nasceu em 1994. A mãe estava presa por tráfico de drogas, não porque era chefe de uma organização criminosa, mas porque vendia uma pequena quantidade para sustentar seu próprio vício. Esse destino é comum nos presídios do país, é também gerador de órfãos de mães vivas. Pobre demais para dar conta dela, a avó colocou Raquel num abrigo aos cinco anos. A menina é de imediato descrita como “agressiva”. E, por esse motivo, é afastada das outras crianças. Passa a morar com o que se chama de “mãe social”, isolada numa casa nos fundos do abrigo. A escolha, como mostra Flávia, evidencia que, desde sempre, a resposta à agressividade de Raquel é a exclusão. Obviamente, também não deu certo. De abrigo em abrigo, Raquel virou aquela que “não dava certo” em abrigo nenhum.
Talvez valesse a pena perguntar se a agressividade, ao se olhar para o contexto e as circunstâncias, não era o principal traço de sanidade de Raquel. Mas o direito à história é o primeiro a ser arrancado das “crianças loucas”. Ela já tinha quase tantos rótulos quanto anos de vida: filha de presidiária, abandonada, agressiva, não dá certo... Raquel só era vista por estigmas e fragmentos.
Ela queria saber qual era o percurso que levava crianças e adolescentes ao hospital psiquiátrico como primeira providência – e não como exceção pontual e por tempo determinado
Negra como Maria, ela foi internada pela primeira vez em 2005, aos 11 anos. Entrou no sistema por ordem da Justiça. Antes de seguirmos o seu destino, é crucial entender as duas formas de entrada nas instituições psiquiátricas, identificadas pela pesquisa. Nelas se encontra uma das chaves para compreender a fabricação das crianças loucas no Brasil atual. Assim como os caminhos pelos quais é mantida viva a função histórica dos manicômios como lugar de segregação daqueles que são decodificados como perigosos para a ordem social, ainda que sejam apenas pobres e abandonados.
Em pouco mais da metade dos casos – 55% – o pedido de internação psiquiátrica foi feito por familiares e por diferentes serviços da rede de saúde. Nos outros 45%, crianças e adolescentes foram internados por ordem judicial. Estes são os dois caminhos de entrada nos hospitais psiquiátricos. A pesquisa mostrou, porém, algumas diferenças fundamentais para compreender o problema: no período pesquisado, a Justiça internou mais cedo, por mais tempo e mais vezes. A maioria dos casos era de adolescentes, mas as crianças respondiam por 20% das internações por ordem judicial. Pela via da rede de saúde, menos de 6% eram crianças. Por ordem judicial, o tempo médio de internação era quase o dobro (55 dias contra 30). A Justiça também foi responsável por 92% das internações com duração maior do que 150 dias. Entre os 14 casos que sofreram internações de quatro a sete vezes, 12 tinham sido confinados por ordem judicial.
Entre eles, Raquel. Dos 11 aos 16 anos, ela foi internada seis vezes no Pinel. A queixa da primeira vez: “Paciente institucionalizada há oito meses (nome de outro hospital), com transtorno de comportamento, heteroagressiva (agressividade dirigida a terceiros), em tratamento ambulatorial pouco resolutivo”. Depois de seis dias, o Pinel deu alta e a menina foi encaminhada a um abrigo. Oito dias mais tarde, ela foi novamente internada por ordem judicial: “Paciente portadora de transtorno de conduta grave. Uma vez no abrigo, voltou a ficar agressiva. Crítica seriamente comprometida, ameaçadora”. Outros 19 dias de internação, e o Pinel pediu à justiça que ela tivesse alta. Passada uma semana, o pedido foi atendido, e ela voltou ao abrigo. Mais três dias e Raquel de novo foi internada no Pinel por ordem judicial: “Ao retornar ao abrigo volta a apresentar quadro importante de liberação de agressividade e falta de controle de impulsos”. Raquel ficou trancada no Pinel por 1004 dias.
Nessas três primeiras vezes, tornou-se evidente que a justiça internava e o hospital liberava, porque não havia razão para manter Raquel confinada. Documentos anexados ao prontuário mostram que a direção da instituição enviou diversos relatórios à justiça, tanto informando da alta médica da paciente quanto pedindo encaminhamento a um abrigo e tratamento ambulatorial. Num dos documentos, a direção afirma: “Nosso hospital está fazendo o papel de Abrigo para esses adolescentes. Sabedores dessa ilegalidade pedimos com urgência uma resolução para esse problema”. E, em outro ofício: “Atualmente a adolescente continua residindo na enfermaria para tratamento de pacientes agudos, encontra-se longe da escola e com enormes prejuízos psicológicos e sociais”.
“Medievais”, “desumanos” e “criminosos”. Essas são algumas das palavras usadas para definir os hospícios desde que a luta antimanicomial se intensificou a partir do final dos anos 1970
A cada três meses, o Pinel mandou ofícios à justiça. Só foi atendido depois de quase dois anos e nove meses. Mas a vida de Raquel fora do hospital durou apenas uma semana. Mais uma vez ela foi internada na instituição. O motivo: “Evolui com episódios recorrentes de agressividade, fugas necessitando atendimento em unidades de emergência. Há dois dias em acompanhamento no CAPS sem aderência ao tratamento”. Depois de mais 413 dias de internação, Raquel fugiu do hospital. Voltou espontaneamente dois dias mais tarde. Para onde mais ela iria, já que o longo período de confinamento esgarçou ainda mais os frágeis vínculos familiares e a impediu de criar novos?
Raquel permaneceu internada mais 244 dias, antes de ser encaminhada a outro abrigo. Quinze dias fora do hospital, e a justiça mandou-a de volta: “Jogou fora seus remédios, quebrou o vidro da brinquedoteca, feriu-se, pegou o telefone para se enforcar e fugiu para uma cidade vizinha dizendo que ia procurar seus avós”.
Na sexta vez, está registrado no prontuário: “A paciente verbaliza que a maior dificuldade que enfrentou no retorno ao abrigo foi uma sensação de inadequação na convivência com adolescentes sem problemas psiquiátricos; infelizmente, criou-se um vínculo inadequado iatrogênico (provocado pela própria prática médica) de segurança com o ambiente de internação, o que se configura como Hospitalismo”.
Em outras palavras. Raquel não sabia mais viver fora do hospital psiquiátrico, seus vínculos estavam dentro da instituição. Se tinha a algum afeto, era ali. Era no hospital que ela sabia como se comportar, identificava uma rotina, fazia amigos entre outras crianças e adolescentes como ela ou realmente doentes. Considerava profissionais de saúde como parentes. E, mais tarde se saberia, quebrava coisas e agredia pessoas quando era mandada para o abrigo porque sabia que assim voltaria àquele que era o único lugar parecido com um lar que tivera na vida.
No total, Raquel ficou trancada no Pinel cinco anos. Sublinha-se: sem necessidade. Sua vida cabe em três caixas do arquivo. Mas esse não foi o fim de sua trajetória manicomial. Em 2010, aos 16 anos, ela foi transferida para outro hospital psiquiátrico
Nessa época, a direção do Pinel mandou mais um ofício à justiça: “Aproveito a oportunidade para dizer da indignação dessa equipe técnica que, por diversas vezes, acionou o judiciário solicitando a desinternação desses adolescentes que, na ocasião, precisavam apenas de um abrigo para moradia e dar continuidade ao atendimento ambulatorial, tendo assim seu direito constituído”.
No total, Raquel ficou trancada no Pinel cinco anos. Sublinha-se: sem necessidade. Sua vida cabe em três caixas do arquivo. Mas esse não foi o fim de sua trajetória manicomial. Em 2010, aos 16 anos, ela foi transferida para outro hospital psiquiátrico.
O diagnóstico que sustentou a condenação de Raquel a uma vida manicomial é bastante revelador: “transtorno de conduta”. Segundo a Classificação Estatística Internacional de Doenças (CID), “os transtornos de conduta são caracterizados por padrões persistentes de conduta dissocial, agressiva ou desafiante. Tal comportamento deve comportar grandes violações das expectativas sociais próprias à idade da criança; deve haver mais do que as travessuras infantis ou a rebeldia do adolescente e se trata de um padrão duradouro de comportamento (seis meses ou mais)”. Essa “patologia”, assim como outras que compõem a CID, é contestada por parte dos psiquiatras, psicanalistas e psicólogos, assim como por profissionais de outros campos do conhecimento. Mas, ainda que se aceite que essa doença de fato existe, o tratamento recomendado é inserção comunitária – e não asilamento.
Em sua investigação, Flávia mostrou que o diagnóstico de “transtorno de conduta” tem sido usado de modo generalizado – e quase displicente – para justificar internações em hospitais psiquiátricos. Tanto na internação pela via da rede de saúde como na internação por ordem judicial, o principal diagnóstico é esquizofrenia. Mas o “transtorno de conduta” tem aumentado. Numa comparação com uma pesquisa anterior, na qual Julia Hatakeyama Joia analisou os prontuários do Pinel entre fevereiro de 2001 e agosto de 2005, Flávia constatou que os chamados “transtornos do comportamento e transtornos emocionais” – dos quais “transtornos de conduta” correspondem a 75% dos casos – cresceram como motivo de confinamento. Em 2002, eram causa de 5,26% das internações. Passaram para 7,14% em 2005. E alcançaram 15,2% das ocorrências em 2009. “Em muitos casos, é diagnosticado em crianças com episódios de descontrole e agressividade, sem que exista uma análise sobre sua história e contexto de vida”, afirma a psicóloga. Outro dado comparativo de extrema relevância é que, entre 2001 e 2004, a proporção de internações no Pinel por ordem judicial era de 23% do total. De 2005 a 2009 saltou para 45%.
Em sua investigação, Flávia mostrou que o diagnóstico de “transtorno de conduta” tem sido usado de modo generalizado – e quase displicente – para justificar internações em hospitais psiquiátricos
O “transtorno de conduta” é bem mais recorrente na internação por ordem judicial do que na internação pela via da rede de saúde. É o diagnóstico de um quarto das internações com duração maior do que 150 dias e por mais de um terço dos casos de crianças e adolescentes internados de quatro a sete vezes. É o rótulo de Raquel – e também o de José. Meninos representam quase 80% das crianças e adolescentes internados, um dado cujas razões precisam ainda ser melhor compreendidas.
José tinha 10 anos quando deu o primeiro passo para dentro do Pinel, por ordem judicial. Tinha passado, segundo o relatório da instituição, por “maus tratos, negligências e privação afetiva”. Apresentou “comportamentos desafiadores e transgressores, o que resultou em rejeição e abandono familiar, principalmente de sua mãe”. A mãe decidiu entregá-lo para o pai, na Bahia. No dia da viagem, José recusou-se a ir. Ele não queria se separar da mãe. Para não ser obrigado a viajar, por duas vezes tentou se jogar diante dos carros, na rua. A “crise de agitação” levou à sua primeira internação. A duração: 623 dias.
Quando teve alta, José foi encaminhado a um abrigo. Permaneceu apenas três dias antes de ser internado novamente. Dessa vez, ficou trancado por 255 dias. José fugiu. Para onde? Para a casa de mãe. Mais uma internação, por “agitação psicomotora com intensa heteroagressividade, baixa tolerância à frustração, sem crítica, e risco de vida”. Dessa vez, ficou 84 dias na instituição antes de fugir novamente. Para onde? Para a casa da mãe. Na quarta e última internação, ele permaneceu 309 dias no Pinel. Foi então encaminhado para um abrigo. De onde fugiu. Para a Bahia, em busca de um lugar e de um afeto.
No total, José ficou 1271 dias trancado no Pinel: três anos e cinco meses. Sobre José e Raquel, a equipe técnica do hospital enviou um ofício à Justiça, em 2008: “(...) Estão em alta médica, mas permanecem nesta enfermaria psiquiátrica para tratamento de pacientes com transtornos mentais agudos, privadas de ter uma vida digna, por não terem retaguarda familiar e não existirem vagas em abrigos”. Sobre esse destino, Flávia afirma: “As internações são motivadas por uma combinação complexa, que resulta numa situação de vulnerabilidade. A resposta da internação psiquiátrica, além de redutora de complexidade, é ela mesma produtora de maior sofrimento. A internação por ordem judicial revela uma concepção sobre a infância e a adolescência pautadas no medo e no perigo. Propõe uma resposta única a todas as situações, sem considerar diferenças, singularidades e contextos. Reduz crianças e adolescentes ao status de paciente psiquiátrico perigoso, produzindo sua cronificação”. É assim que se fabricam crianças loucas.
Vale a pergunta: fugir pode ter sido um ato de sanidade de José, na tentativa de não ser enlouquecido? De algum modo, apesar de tudo e de todos, ele parece acreditar que existe um lugar para ele, um lugar com afeto. José, Raquel e Maria nos mostram que não há desamparo maior do que o de uma criança num manicômio. Ninguém está mais sozinho nesse mundo do que José, Raquel e Maria. Expostos a uma sociedade que, além de não protegê-los, os enlouquece. Eles fogem, como José, eles quebram tudo, como Raquel, eles fazem perguntas, como Maria. Mas estão sozinhos. E cada um de seus atos de resistência é mais um carimbo de sua suposta loucura num arquivo morto.
O desafio exposto pela pesquisa é também o de completar a reforma psiquiátrica no Brasil. Crianças e adolescentes, segundo a legislação, devem ser tratados dentro da comunidade, junto à família, sem afastamento da escola
Ao analisar os prontuários, Flávia conseguiu identificar claramente as diferenças entre a internação via rede de saúde e a internação por ordem judicial. Essas são conclusões cruciais do trabalho, porque apontam o que funciona e o que não funciona, apontam saídas. Na rede de saúde, a maior parte dos encaminhamentos é feita pela emergência de hospitais, o que não é o melhor percurso. Apenas 8% são enviados para internação por Unidades Básicas de Saúde ou por CAPS (Centro de Atenção Psicossocial) infantil, que deveriam ser a porta de entrada para crianças e adolescentes com sintomas de doenças mentais. Esses dados demostram a falta desses serviços, causando desamparo na população que necessita de assistência pelo SUS. Em vez de começarem o tratamento pela rede básica, inserida na comunidade, o iniciam pelo fim e por aquilo que é uma exceção necessária num mínimo de casos: a internação. A hipótese de Flávia é de que, se houvesse mais serviços comunitários de saúde mental, como está previsto na legislação, é provável que a necessidade de internação fosse bem menor. Em vez do hospital psiquiátrico, uma rede articulada, com investimento maior em equipes de saúde mental, na capacitação e implantação do Programa de Saúde da Família e de centros de atenção psicossocial. “A patologização das crianças em situação de vulnerabilidade social evidencia a precariedade da rede de atenção e cuidado, e também a insuficiente articulação entre as políticas públicas nos campos da educação, saúde, habitação e lazer”, afirma.
A diferença é clara na análise dos dados. Nos casos encaminhados pelos Centros de Atenção Psicossocial, a média de dias de internação é mais baixa do que pelos outros caminhos. Quando crianças e adolescentes são cuidados pelos CAPS depois da alta, apenas 3% são reinternados. “Isso mostra que os serviços comunitários funcionam, mas são em número insuficiente”, afirma Flávia. “Nos pacientes encaminhados pela rede de saúde, o hospital funciona como enfermaria de crise. A maioria é de adolescentes de 15 a 17 anos, em seu primeiro surto psicótico, que são cuidados e liberados. Já na internação por via judicial, o hospital funciona como instituição de asilamento.”
O desafio exposto pela pesquisa é também o de completar a reforma psiquiátrica no Brasil. Crianças e adolescentes, segundo a legislação, devem ser tratados dentro da comunidade, junto à família, sem afastamento da escola. A doença, se de fato existe, deve ser compreendida como uma das várias características – e não como a verdade única sobre aquela criança e adolescente. Mesmo a internação, se for necessária, deve ser entendida como uma parte da história – e não como a história inteira. A internação é um momento, não um destino.
Flávia permanecia das 10h até as 21h de cada sábado na sala das almas do Pinel. Numa noite, estava tão mergulhada nos prontuários que se esqueceu da hora e se atrasou para sair. O guarda do portão recusou-se a deixá-la ir. Eram as regras. Ele não estava ali para pensar sobre elas, mas para cumpri-las. E Flávia soube o que era estar entre muros – e não ser escutada. Depois de um tempo que pareceu largo demais, Flávia conseguiu provar que era uma psicóloga, fazendo um trabalho de pós-graduação para a PUC. Acredita que o fato de ser branca, loira e de olhos azuis possa ter ajudado na sua “soltura”. Mas, ao abrir o portão, o segurança alertou: “Na próxima vez, fica”. Por um momento, trêmula, Flávia teve uma tênue aproximação do que sentiram Raquel, José e Maria, apenas três entre as centenas de “crianças loucas” fabricadas nesse século.
Ao final de sua estadia no arquivo morto que ela descobriu ser vivo, Flávia finalmente tinha as respostas para Maria.
1) Por que eu vou ficar aqui?
- Porque as instituições que compõem a rede de atendimento à criança e ao adolescente trabalham de forma desintegrada e não conseguem atender às suas necessidades.
2) Quem tá aí? Quem vai dormir no quarto comigo?
- As crianças e os adolescentes que tiveram seus destinos produzidos ativamente pela desresponsabilização e pelo abandono.
Maria perguntou. Flávia escutou. Escutou de fato não quando a ouviu, mas quando fez o movimento de buscar as respostas. Elas estão aí, mas só provocarão mudança se o Estado, os governos e a sociedade as escutarem. Se nós as escutarmos. É, afinal, de escuta que se trata.
Flávia desconhece o paradeiro de José. Raquel foi libertada ao completar 18 anos. Mas o que há para Raquel depois do que fizemos com ela? É possível, é moral, é decente dizer à Raquel: vá estudar, vá trabalhar, vá construir uma vida? “É uma marca tão profunda que pessoas como Raquel, mesmo saindo da instituição, continuam institucionalizadas”, diz Flávia. “A institucionalização parece uma grande máquina que suga a potência humana, criando seres humanos sem desejo. A institucionalização é a patologia mais grave da saúde mental.”
Aos 19 anos, Raquel hoje perambula pelas ruas e albergues de São Paulo, ao redor das instituições. Às vezes declara-se “louca” e é internada por curtos períodos. Raquel sempre pergunta pelo seu melhor amigo:
- Onde está José?


Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficçãoColuna Prestes - o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da RuaA Menina Quebrada, Meus Desacontecimentos e do romance Uma Duas. Email:elianebrum@uol.com.brO endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. . Twitter: @brumelianebrum