Este espaço se propõe a reunir material sobre loucura e todo o aparato que a envolve. Espaço para memória, videos, leituras, noticias e tudo o mais que nos cair em mãos em nossa tarefa diária de pensar sobre o tema.Também postaremos materiais que, ainda que não se relacionem diretamente com o tema, esclarecem o pensamento de autores importantes para se chegar lá. Doiduras, maluquices, vesânias de toda sorte serão bem vindas.

19 de dez. de 2011

L'ABÉCÉDAIRE DE GILLES DELEUZE - U de UNO




(O abecedario de Gilles Deleuze. -Entrevista feitas a Deleuze por Claire Parnet. Retirada da internet -- em O estrangeiro.net --, a tradução que se segue não revela o nome do bem intencionado internauta que a fez. De qualquer forma lhe somos gratos.) 



U de Uno
CP: U, V, W, X, Y, Z. É o fim e vamos ser rápidos. U de Uno; V de Viagem; W de Wittgenstein, X, o Desconhecido, Y vamos deixar para os neo-platonicianos e Z fecha e ilumina. U é Uno.
GD: Uno.
CP: Sim, Uno. A Filosofia ou a Ciência cuidam do universal. No entanto, você diz que a Filosofia deve manter contato com as singularidades. Existe um paradoxo?
GD: Não há paradoxo, porque a Filosofia, e até mesmo a Ciência, não tem nada a ver com o universal. São idéias preconcebidas de opiniões. A opinião sobre a Filosofia é que ela cuida do universal. E a opinião sobre a Ciência é que ela cuida de fenômenos universais que podem se repetir. Mesmo se pegar a fórmula de que todo corpo cai, o importante não é que todos os corpos caem e, sim, a queda e as singularidades da queda. Que as singularidades científicas como as da matemática, da física ou da química, como ponto de congelamento, sejam reproduzíveis, tudo bem, mas e daí? São fenômenos secundários, processos de universalização. Mas a Ciência não cuida de universais, mas de singularidades. Quando é que um corpo muda de estado e passa do líquido para o sólido, etc.? A Filosofia não cuida do Uno, do ser, nada disso.Tudo isso é besteira! Também ela cuida de singularidades. Seria preciso perguntar o que são as multiplicidades. As multiplicidades são conjuntos de singularidades. A fórmula da multiplicidade é "n menos 1". Ou seja, o 1 é sempre o que deve ser subtraído. Acho que há dois erros que não devem ser cometidos. A Filosofia não cuida de universais. Há três universais. Poderíamos relacioná-los. Há os universais de contemplação, as Idéias, com um I maiúsculo. Há os universais de reflexão e os universais de comunicação. É o último refúgio da Filosofia dos universais. Habermas gosta muito dos universais de comunicação. Isso implica definir a Filosofia como contemplação, como reflexão ou como comunicação. Os três casos são cômicos. É uma palhaçada. O filósofo que contempla, tudo bem, é muito engraçado. O filósofo que reflete não é engraçado. É pior, porque ninguém precisa de um filósofo para refletir. Os matemáticos não precisam de um filósofo para refletir, um artista não precisa procurar um filósofo para refletir sobre a pintura ou a música. Boulez não precisa dele para refletir sobre música. Dizer que a Filosofia é uma reflexão segura é desprezar a Filosofia e o motivo de sua reflexão. Não precisa de Filosofia para refletir. Quanto à comunicação, nem se fala! A idéia de que a Filosofia seja um consenso para comunicar a partir dos universais da comunicação é a idéia mais divertida que já vi. A Filosofia não tem nada a ver com comunicação. A comunicação se basta. É uma questão de opinião e de consenso de opinião. É a arte das interrogações. A Filosofia não tem nada a ver. Como já disse, a Filosofia cria conceitos. Não é comunicar. A Arte não é comunicativa, não é reflexiva, nem a Ciência, nem a Filosofia. Não é contemplativa, nem reflexiva, nem comunicativa. É criativa. Nada mais. A fórmula é "n menos 1", eliminar a unidade, eliminar o universal.
CP: Então, os universais não têm nada a ver com Filosofia?
GD: Não, nada a ver.

L'ABÉCÉDAIRE DE GILLES DELEUZE - T de TENIS

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(O abecedario de Gilles Deleuze. -Entrevista feitas a Deleuze por Claire Parnet. Retirada da internet -- em O estrangeiro.net --, a tradução que se segue não revela o nome do bem intencionado internauta que a fez. De qualquer forma lhe somos gratos.) 


T de Tênis
CP: T de Tênis.
GD: Tênis!
CP: Você sempre gostou de tênis. Há uma famosa história em que você, criança, foi pegar um autógrafo de um grande jogador sueco e viu que pegou o autógrafo do rei da Suécia.
GD: Mas eu já sabia que era ele! Ele já era centenário. Tinha um monte de seguranças. Eu fui pedir um autógrafo ao rei da Suécia. O jornal Le Figaro tinha me fotografado. Havia uma foto onde um menino pedia um autógrafo ao velho rei da Suécia. Era eu.
CP: E quem era o grande jogador sueco?
GD: Era Borotra. Não era um grande jogador sueco. Era o guarda-costas do rei, que jogava tênis com ele e o treinava. Ele me chutava para eu não me aproximar do rei. Mas o rei foi muito bonzinho. Borotra também ficou bonzinho. Não é um momento brilhante na vida de Borotra.
CP: Houve outros ainda piores de Borotra. É o único esporte que assiste na TV?
GD: Não, eu adorava futebol também. O que mais? Acho que é só: tênis e futebol.
CP: Você jogou tênis?
GD: Sim, muito. Até a guerra. Sou uma vítima da guerra.
CP: O que muda em seu corpo quando pratica tênis e depois deixa de praticar? Muda alguma coisa?
GD: Não sei, acho que não. Para mim, não mudou nada, Não era um profissional. Eu tinha 14 anos em 1939. Eu parei de jogar tênis aos 14 anos e não foi um drama.
CP: Você foi uma revelação?
GD: Até que eu jogava bem para a minha idade. Só fazia isso.
CP: Estava classificado?
GD: Não, só tinha 14 anos. Além do mais, não havia o desenvolvimento que há hoje.
CP: Praticou outro esporte, o boxe francês, não?
GD: Lutei um pouco de boxe, mas me machucaram e parei logo. Mas fiz um pouco.
CP: Acha que o tênis mudou muito desde sua juventude?
GD: Todos os esportes! São meios de variações. E voltamos ao problema do estilo. O esporte é muito interessante porque está ligado às atitudes do corpo. Há uma variação das atitudes do corpo, as quais se estendem ao longo de períodos de tempo relativamente prolongados. É claro que não se pulam arbustos hoje como se pulavam há 50 anos. Arbustos ou outra coisa... É preciso classificar as variáveis na história dos esportes, pois há variáveis de tática. No futebol, as táticas mudaram muito desde a minha infância. Há variáveis de atitude, de posturas de corpo. Há variáveis que geram implicações. Houve uma época em que me interessei por lançamento de peso. Não para praticá-lo, mas porque os gabaritos dos lançadores de peso evoluíram rapidamente. Tratava-se de força, mas como recuperar velocidade com lançadores muito fortes? Tratava-se também de gabaritos rápidos, mas, usando a velocidade como primeiro elemento, como recuperar a força? É muito interessante. O sociólogo Mauss havia lançado um estudo sobre as atitudes do corpo nas civilizações. O esporte é uma área fundamental das variações das atitudes. No tênis, antes da guerra, — eu me lembro bem dos campeões da época —, as atitudes eram muito diferentes. O que me interessava muito — e voltamos à questão do estilo — eram os campeões que são realmente criadores. Há dois tipos de campeões que não têm o mesmo valor para mim: os criadores e os não-criadores. Os não-criadores são aqueles que usam um estilo já existente como uma força inigualável, como Lendl, por exemplo, que não é criador em tênis. E os grandes criadores. Esses são os que inventam novas jogadas e introduzem novas táticas. E nisso tudo, há uma série de seguidores. Os grandes estilistas são os inventores. Eles também existem nos esportes. Qual foi a grande virada do tênis? Foi a sua proletarização, mas com a devida relatividade. Tornou-se um esporte popular... Mais para jovens executivos do que proletários, mas, mesmo assim, vou falar em proletarização do tênis. Havia movimentos profundos que justificavam o ocorrido, mas isso não teria acontecido sem a existência de um gênio. Borg foi o responsável. Por quê? Porque trouxe o estilo de um tênis popular. Foi preciso que ele o criasse. Depois, outros campeões o seguiram, mas não eram criadores, como Vilas, etc. Mas Borg me convém perfeitamente, por causa de sua cara de Cristo. Ela tinha aquela expressão crística, aquela extrema dignidade, o fato de ser respeitado por todos os jogadores.
CP: Você estava dizendo: "Eu assisti...".
GD: Sim, eu assisti muita coisa em tênis, mas quero fechar sobre o Borg. Borg é um personagem crístico. Garante o esporte popular, cria o tênis popular. Isso implica na total invenção de um novo jogo. Há uma série de campeões de valor como Vilas, mas que vieram impor um jogo soporífico. Mas sempre voltamos àquela lei: "Vocês estão me elogiando e estou a cem léguas do que queria fazer". Pois Borg muda. Quando sente que deu certo, ele muda, não o interessa mais e ele evolui. O estilo de Borg evoluiu, enquanto que os "burocratas" mantinham a mesma coisa. O anti-Borg era o McEnroe.
CP: Qual era o estilo proletário de Borg?
GD: Um estilo de fundo de área, recuo total, e o liftage... e a proximidade da rede. Qualquer proletário ou executivo menor pode entender este jogo. Mas não disse que poderia jogar assim. O princípio do jogo de Borg é o contrário dos princípios aristocráticos. São princípios populares, só que faltava um gênio para revelá-los. Borg é exatamente como Jesus Cristo. É um aristocrata que se dirige ao povo. Estou dizendo besteiras... Borg foi impressionante. Muito curioso. Um grande criador no esporte. E havia McEnroe, que era um aristocrata puro, um aristocrata meio egípcio, meio russo. Saque egípcio, alma russa. Inventava jogadas que ele sabia que ninguém poderia fazer igual. De fato, ele inventava jogadas prodigiosas. Ele inventou uma que é colocar a bola. Não bate nela, só a coloca. Ele fez uma série de saques-cortadas que eram conhecidos, mas os de McEnroe foram renovados por completo. Poderia falar de muitos outros. Mas há outro grande, mas que não tem a mesma importância. É outro americano, esqueci o nome dele.
CP: Connors.
GD: Sim, nele vemos o princípio aristocrático da bola sem efeito e dando uma rasante na rede. Este é um princípio aristocrático. E o toque de raquete em desequilíbrio. Nunca ninguém teve tanto gênio quanto ele em desequilíbrio. São jogadas muito curiosas. Há uma história dos esportes, mas isso vale para todos. É exatamente como na Arte. Existem os criadores, os seguidores, as mudanças, as evoluções, a história e há o devir do esporte.
CP: Você começou dizendo "Eu assisti...".
GD: É mais um detalhe. Às vezes é difícil determinar a origem de uma jogada. Antes da guerra, havia os australianos. Aí, existem questões de nações. Porque foram os australianos que trouxeram a rebatida cruzada com duas mãos. No início, só os australianos o faziam, pelo que me lembro. É uma invenção australiana. Por que os australianos? Não sei, mas deve ter um motivo. Mas eu me lembro de uma jogada que tinha me impressionado quando menino porque não tinha efeito nenhum. Víamos que o adversário geralmente errava e pensávamos: "Por quê?". Era uma jogada sem graça. Mas, pensando bem, percebíamos que era na rebatida. O adversário sacava e o jogador rebatia a bola. Ele rebatia com pouca força, mas tinha a propriedade de cair exatamente na ponta dos dedos do pé daquele que sacou e que recebia a bola de volta. Ele não conseguia pegá-la. Era uma jogada estranha. Nós pensávamos: "Mas o que é isso?". Não entendíamos bem por que era uma jogada tão bem-sucedida e impressionante. Acho que o primeiro a ter sistematizado esta jogada foi um grande jogador australiano que se chamava Brownwich. Ele devia ser do pós-guerra. Não me lembro bem. Foi um grande jogador e um criador de jogadas. Quando rapaz, eu me lembro bem disso, era impressionante. Hoje, é uma jogada clássica, todos fazem isso. Mas é o caso de uma invenção de jogada; a geração de Borotra não conhecia este tipo de rebatida.
CP: Para fechar o assunto, quando McEnroe reclama e insulta o juiz, aliás, ele xinga a si próprio mais do que ao juiz, é uma questão de estilo porque não gostou de sua expressão?
GD: Não, é uma questão de estilo porque faz parte do estilo dele. É uma descarga nervosa. Como um orador pode ficar furioso, mas há oradores glaciais. Sim, faz parte do estilo. É a alma. Como se diria em alemão, é a Gemüt.
CP: Agora, U de Uno.
GD: Uno!

30 de nov. de 2011

L'ABÉCÉDAIRE DE GILLES DELEUZE - S De STYLO

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(O abecedario de Gilles Deleuze. -Entrevista feitas a Deleuze por Claire Parnet. Retirada da internet -- em O estrangeiro.net --, a tradução que se segue não revela o nome do bem intencionado internauta que a fez. De qualquer forma lhe somos gratos.)

S de Style [Estilo]
CP: S de Style [Estilo].
GD: Essa é boa.
CP: O que é o estilo? Em Diálogos, você diz que é a propriedade daqueles que não têm estilo. Disse isso sobre Balzac, se não me engano. O que é um estilo?
GD: Essa não é uma perguntinha à toa.
CP: Foi por isso que perguntei tão rápido.
GD: Eu acho o seguinte: para entender o que é um estilo, não se deve saber nada de lingüística. A lingüística causou muito mal. Por quê? Porque há uma oposição da qual Foucault falou muito bem. Há uma oposição entre a lingüística e a literatura. Ao contrário do que dizem, elas não combinam. Para a lingüística, uma língua é sempre um sistema em equilíbrio, portanto, da qual existe uma ciência. E o resto, as variações, vão para o lado da fala e não da língua. Quando se escreve, sabe-se que uma língua é, na verdade, um sistema que está longe do equilíbrio, é um sistema em perpétuo desequilíbrio. Tanto que não há diferença de nível entre língua e fala, mas a língua é feita de todo tipo de correntes heterogêneas em desequilíbrio umas com as outras. Mas o que é o estilo de um grande autor? Eu acho que existem duas coisas em um estilo. Vou responder clara e rapidamente, e tenho vergonha de ser tão breve! Um estilo é composto de duas coisas: a língua que falamos e escrevemos passa por um tratamento que é um tratamento artificial, voluntário. É um tratamento que mobiliza tudo: a vontade do autor, assim como seus desejos, suas necessidades, etc. A língua sofre um tratamento sintático original. Nisso encontramos novamente o tema do animal. Pode ser fazer a língua gaguejar. Não estou falando de você mesmo gaguejar, mas de fazer a língua gaguejar. Ou fazer a língua balbuciar, o que não é a mesma coisa. Vejamos exemplos de grandes estilistas: o poeta Ghérasim Luca. A grosso modo, ele faz gaguejar, não sua própria fala, mas a língua. Péguy! É engraçado, porque as pessoas acham que Péguy tem uma personalidade estranha, mas esquecem que, acima de tudo, como todo grande artista, é um louco total. Nunca ninguém escreveu, nem escreverá como Charles Péguy. Ele faz parte dos grandes estilistas da língua francesa, das grandes criações da língua francesa. O que ele faz? Não se pode dizer que seja um gaguejar. Ele faz a frase crescer pelo meio. É fantástico! Em vez de fazer frases que se seguem, ele repete a mesma frase com um acréscimo no meio dela, o qual, por sua vez, vai gerar outro acréscimo, etc. É um processo no qual ele faz a frase proliferar pelo meio através de inserções. Um grande estilo é isso. Este é o primeiro aspecto: fazer com que a língua passe por um tratamento, mas um tratamento incrível. É por isso que um grande estilista não é um conservador da sintaxe. É um criador de sintaxe. Eu mantenho a bela fórmula de Proust: "As obras-primas são sempre escritas em uma espécie de língua estrangeira". Um estilista é alguém que cria em seu idioma uma língua estrangeira. Isso vale para Céline, para Péguy. É assim que se reconhece um estilista. Ao mesmo tempo que, sob o primeiro aspecto, a sintaxe passa por um tratamento deformador, contorcionista, mas necessário, que faz com que a língua na qual se escreve se torne uma língua estrangeira, sob o segundo aspecto, faz-se com que se leve toda a linguagem até um tipo de limite. É o limite que a separa da música. Produz-se uma espécie de música. Quando se conseguem essas duas coisas e se há necessidade para tal, é um estilo. Os grandes estilistas fazem isso. É verdade para todos: cavar uma língua estrangeira na própria língua e levar toda a linguagem a uma espécie de limite musical. Ter um estilo é isso.
CP: E você acha que tem um estilo?
GD: Que perfídia!
CP: Mas seu estilo mudou desde o seu primeiro livro.
GD: A prova de um estilo é a variabilidade. E, em geral, vai se tornando cada vez mais sóbrio. Mas isso não quer dizer menos complexo. Penso em um dos autores que muito admiro do ponto de vista estilístico: Jack Kerouac. No final, Kerouac é uma linha japonesa. Seu estilo é um desenho japonês, uma pura linha japonesa. Tornar-se mais sóbrio, mas isso sempre implica a criação de uma língua estrangeira na própria língua. Eu também penso em Céline. As pessoas costumavam dizer que Céline introduziu a língua falada na escrita. É uma besteira, pois, na verdade, há um tratamento escrito na língua, é preciso criar uma língua estrangeira na própria língua para se obter por escrito a equivalência da língua falada. Ele não introduziu o falar na escrita. Mas quando o elogiam por isso, ele sabe muito bem que está muito longe do que ele queria. E vai ser no segundo romance, em Mort à crédit, que ele vai se aproximar mais. Quando Mort à credit foi publicado, disseram que ele havia mudado. E ele sabe novamente que está longe do que quer. Ele vai obter o que quer em Guignol's bande, no qual ele realmente leva a linguagem a um limite tal que a aproxima da música. Não é mais o tratamento da língua que a torna estrangeira, mas o fato de toda a linguagem ser levada a um limite musical. Por natureza, um estilo muda, ele tem variações.
CP: É verdade que se pensa muito em Steve Reich, com sua música repetitiva, quando se lê Péguy.
GD: Sim, só que Péguy tem mais estilo do que Steve Reich.
CP: Não respondeu à minha perfídia. Você acha que tem estilo?
GD: Eu gostaria de ter. O que posso dizer? Para ser um estilista, dizem que é preciso viver o problema do estilo. Se é assim, para responder com mais modéstia, eu vivo o problema do estilo. Nunca escrevo sem pensar no estilo. Sei que eu não obteria o movimento dos conceitos que eu desejo sem passar pelo estilo. Sou capaz de refazer dez vezes a mesma página.
CP: O estilo é como uma necessidade de composição do que você escreve. A composição entra em jogo de forma primordial.
GD: Acho que tem toda razão. O que está dizendo: será que a composição de um livro já é uma questão de estilo? Acho que é sim. A composição de um livro é algo que não se resolve previamente. Ela acontece ao mesmo tempo em que o livro é escrito. Por exemplo, vejo em livros que eu escrevi, se me permite citar o que eu fiz... Há dois livros meus que me parecem compostos. Sempre dei importância à composição. Penso em um livro chamado Lógica do sentido que é composto por séries. Para mim, é uma composição serial. E Mil platôs é uma composição por platôs. Para mim, são duas composições musicais, sim. A composição é um elemento fundamental do estilo.
CP: Em sua expressão, você acha que, hoje, está mais próximo do que queria fazer há vinte anos atrás? Ou não é nada disso?
GD: Atualmente, tenho a impressão de estar me aproximando, sim. No que ainda não foi feito, acho que estou me aproximando. Detenho algo que eu buscava e não tinha encontrado.
CP: O estilo não é só literário. É sensível a ele em todas as outras áreas. Você vive com a elegante Fanny e seu amigo Jean-Pierre também é muito elegante. É muito sensível a esta elegância?
GD: Sim, eu me sinto... Eu gostaria de ser muito elegante, mas sei que não sou. Mas, para mim, a elegância é uma coisa... Quero dizer que existe uma elegância que consiste em se perceber o que é uma elegância. Do contrário, há pessoas que não entendem nada e o que chamam de elegância não é nada elegante. Uma certa compreensão da elegância já faz parte da elegância. Isso me impressiona muito. É uma área que, como todas as outras, exige um certo aprendizado, um certo talento... Mas por que perguntou isso?
CP: Por causa do estilo.
GD: Sim, claro. Mas este aspecto não é nada valioso. O que talvez se deveria...
CP: Deveria?
GD: Não sei. Acho que não depende apenas da elegância, que é uma coisa que admiro muito, mas o importante no mundo é tudo o que emite signos. A não-elegância e a vulgaridade também emitem signos. É muito mais isso que me importa. São as emissões de signos. É certamente por isso que gostei tanto e ainda gosto de Proust. O mundanismo, as relações mundanas são emissões de signos fantásticas. O que chamam de gafe é uma não-compreensão de um signo. São signos que as pessoas não entendem. A mundanidade como um meio fértil de signos vazios, absolutamente vazios, sem interesse algum, mas são as velocidades, a natureza das emissões. Isso tem a ver com o mundo animal, pois ele também é um emissor de signos fantásticos. Os animais e os mundanos são mestres em signos.
CP: Você não sai muito, mas sempre preferiu noites mundanas a conversas entre amigos.
GD: Sim, porque nos meios mundanos, não se discute, não há esta vulgaridade. E a conversa é totalmente supérflua, leve, com evocações extremamente rápidas. São emissões de signos muito interessantes.

20 de nov. de 2011

Um louco? Gui de Maupassant

QUANDO me contaram: “Sabe que Jacques Parent morreu numa casa de saúde?”, um doloroso calafrio, um calafrio de medo e angústia me percorreu pelos ossos; e revi bruscamente, depois de tanto tempo, aquele corpulento e estranho louco, talvez, maníaco inquietador, medonho mesmo.
Era um homem de quarenta anos, alto, magro, meio curvo, com olhos de alucinado, olhos negros, tão negros que não se lhe distinguiam as pupilas, móveis, inquietas, enfermas, angustiantes. Aquele ser singular, perturbador, que emanava, que lançava em redor de si um vago mal- estar, da alma, do corpo, uma dessas incompreensíveis reações nervosas que fazem crer em influências sobrenaturais.
Ele possuía um sestro aborrecido: a mania de esconder as mãos. Porque jamais ele as deixava errar como nós fazemos sobre todos os objetos, em cima das mesas. jamais ele agarrava as coisas com aquele gesto familiar que todos temos. jamais ele as conservava nuas, aquelas mãos ossudas, magras, algo febricitantes.
Ele as afundava nos bolsos, sob as axilas, ao cruzar os braços. Diziam que receava elas praticassem, à sua revelia, algum gesto proibido, que cometessem alguma ação vergonhosa ou ridícula, caso as deixasse livres em seus movimentos.
Quando era obrigado a servir-se delas, para os usos comuns da vida, fazia-o por movimentos bruscos, rápidos impulsos dos braços, como se não lhes quisesse dar tempo de agir por si próprias, de fugirem à sua vontade, de executarem outros movimentos. A mesa, servia-se do copo, do garfo ou da faca tão rapidamente que nunca se tinha tempo de prever o que iria fazer antes que ele completasse o gesto.
Então, certa noite, tive a explicação da surpreendente doença de sua alma.
Ele vinha passar, de tempos em tempos, algum dia comigo no campo, e, naquela noite, apareceu-me particularmente agitado.
Uma tempestade desenhava-se no céu, abafado e negro, depois de um dia de calor atroz. Nenhum sopro de ar movia as folhas. Um calor de forno oprimia os rostos, fazendo os peitos ofegarem. Eu me sentia mal, agitado, e desejava ir para a cama.
Quando percebeu que me levantava para sair, Jacques Parent segurou, me pelos braços, num gesto sobressaltado.
- Oh, não, fique mais um pouco! – exclamou.
Fitei-o com surpresa, e murmurei:
- Essa tempestade próxima abala-me os nervos.
Ele gemeu, ou melhor, berrou:
- E a mim, então? Oh, fique, rogo-lhe, pois não posso estar sozinho!
Pareceu-me desvairado.
Perguntei-lhe:
- Que tem você? Perdeu a cabeça?
- Sim, em alguns momentos, como em noites assim, noites plenas de eletricidade. . . eu tenho… eu tenho… tenho medo… tenho medo de mim mesmo … Não me compreende? É que sou dotado de um poder … não, de uma potência… de uma força… Enfim, não sei explicar o que seja, mas existe em mim uma ação magnética tão extraordinária que me apavora, que me faz temer a mim mesmo, como lhe disse há pouco.
E, ao falar, sentia estranhos arrepios, suas mãos vibravam, ocultas, por baixo do paletó. E eu mesmo me senti logo invadido de um temor confuso, poderoso, horrível. Tive vontade de partir, salvar-me, de nunca mais vê-lo, de jamais tornar a ver aqueles olhos errantes pousarem em mim, e depois se afastarem, fixarem-se no teto, à procura de algo, de algum canto sombrio onde se firmarem, como se ele quisesse ocultar, também, seu temível olhar.
Balbuciei a custo:
- Você nunca me disse isso.
E ele retrucou:
- E quer que conte isso a qualquer um? Vamos, ouça, esta noite não mais me posso calar. E apraz-me, realmente, que você fique sabendo de tudo. Sim,- até poderá socorrer-me, se for preciso.
“0 magnetismo! Sabem lã o que é? Não. Ninguém o sabe. Todavia, o constatam. Reconhecem-no os próprios médicos, que o praticam. Um dos mais ilustres, Charcot, professa-o; então, sem dúvida, existe.
“Um homem, um ser, possui o poder terrível e incompreensível de adormecer, com a força de sua vontade, outro ser, e, durante o sono deste, rouba-lhe o pensamento, ou melhor, sua alma; a alma, esse santuário, esse recesso do Eu, a alma, esse segredo que o homem julga impenetrável, a alma, esse refúgio dos indecifráveis pensamentos, de tudo que ocultamos, de tudo quanto amamos, de tudo que desejamos furtar aos olhos humanos. E ele a abre, viola-a, escancara-a, mostra-a em público! Não é isso atroz, .criminoso, infame?
- Porque, como se pode fazer tal coisa? Quem poderá sabê-lo?
” Tudo é mistério. Nós não nos comunicamos com as coisas senão por meio de nossos miseráveis sentidos, incompletos, frágeis, tão débeis que mal têm o poder de verificar o que nos rodeia. Tudo é mistério. Pense na música, essa arte divina, essa arte que nos arrebata a alma, que a transporta, que a embriaga, que a enlouquece; e que e ela, então? Nada!
“Você não me compreende? Ouça. Dois corpos se chocam. 0 ar vibra. Essas vibrações são, mais ou menos, numerosas, mais ou menos rápidas, mais ou menos fortes, segundo a natureza do choque. Agora, nós temos no ouvido uma pequena membrana, que recebe essas vibrações do ar e as transmite ao cérebro, em forma de som. Imagine que um copo de água se transforme em vinho em sua boca. 0 tímpano realiza essa incrível metamorfose, esse surpreendente milagre de transformar o movimento em som. E isso é tudo.
“A música, essa arte complexa e misteriosa, exata como a álgebra e vaga como um sonho, essa arte feita de matemáticas vibrações, resulta, portanto, da estranha propriedade de uma membrana. Se não existisse essa membrana, o som também não existiria. porque ele, em si, não passa de uma vibração. Sem o ouvido, se tornaria ele em música? Não! Pois bem, nós somos rodeados de coisas que Jamais perceberemos, porque nos faltam os órgãos necessários que no-las revelem.
“0 magnetismo pode ser uma dessas coisas, talvez. Nós não podemos senão pressentir-lhe o poder, mal tentamos timidamente sentir a proximidade dos espíritos, sem poder explicar esse novo segredo da natureza, porque não possuímos o instrumento revelador.
“Quanto a mim- Quanto a mim, sou dotado de um poder espantoso. Dir-se-ia haver outro ser encerrado em mim, que deseja, sem cessar, evadir-se, agir à minha revelia, um ser que se move, que me rói, que me possui. Quem é ele? Nada sei, mas somos dois em meu pobre corpo, e é ele, o outro, que freqüentemente é o mais forte, como acontece esta noite.
“Basta-me apenas olhar para as pessoas para adomecê-las. como se lhes houvesse ministrado ópio. Basta-me estender as mãos para produzir coisas… coisas horríveis. Você quer saber? Sim, você quer saber! Meu poder estende-se não só sobre os homens mas também sobre os animais e, mesmo… sobre os objetos.
“E isso me atormenta e me apavora. Quantas vezes me assaltou o desejo de vazar os olhos e decepar as mãos!
“Mas eu quero… quero que você saiba de tudo! Venha! Vou mostrar-lhe aquilo… não sobre criaturas humanas, que isso todos sabem fazer, vê-se: em toda parte, mas sobre… sobre… um animal.
“Chame Mirca!
Ele caminhava a passos largos, feito um alucinado, e suas mãos saíram dos bolsos. Elas surgiram assustadoras, como se ele houvesse desnudado duas espadas.
Eu lhe obedecia maquinalmente, subjugado, vibrando de terror, mas devorado por uma espécie de desejo impetuoso de ver, de saber. Abri a porta e assobiei para minha cadela, que dormia no vestíbulo. Ouvi-lhe logo o raspar das unhas junto às escadas e ela surgiu alegre, balançando o rabo.
Em seguida, fiz-lhe sinal para deitar-se numa poltrona; ela obedeceu e Jacques começou a olhar para ela, afagando-a.
A Principio, a cadela parecia inquieta: estremecia, virava a cabeça. a fim de evitar o olhar fixo do homem, tomada de um medo sempre crescente. De repente, principiou a tremer, como tremem os cães. Todo seu corpo palpitava, sacudido de longos arrepios, e quis fugir dali. Mas Jacques pousou a mão sobre o crânio do animal, que emitiu, ao ser tocado, um desses longos uivos que se ouvem à noite pelos campos.
Sentei-me, também assustado, estarrecido, tanto, como se estivesse enjoando a bordo de um barco em mar agitado. Eu via os móveis caindo, moverem-se pelas paredes. E gaguejei:
- Chega, Jacques, chega!
Mas ele não mais me escutava, olhava para Mirza com um olhar fixo, contínuo, assustador. Ela cerrou os olhos enquanto deixava tombar a cabeça como se houvesse adormecido. Jacques olhou para mim.
- Está feito, agora você já viu.
E, atirando seu lenço para o outro lado do quarto, gritou:
- Traga-mo!
0 animal então se levantou e, tropeçando, cambaleando, como se estivesse cego, mexendo suas patas a custo, como os paralíticos fazem com suas pernas, seguiu na direção do lenço, que parecia uma mancha branca no chão. Ela tentou várias vezes pegá-lo na boca, mas mordia aos lados, sem atingi-lo, como se não o visse. Afinal alcançou-o e voltou para nosso lado, sempre . parecendo um cão presa de sonambulismo.
Era um espetáculo horrível de ver. Jacques ordenou:
- Deite-se!
Ela deitou-se. Então, ele lhe tocou a testa e disse:
- Uma lebre! Pega, pega!
- E o animal, sempre de lado, tentou correr movendo-se como se estivesse dormindo, e emitiu, sem abrir muito a goela, pequenos latidos de ventríloquos.
Jacques parecia ter enlouquecido. 0 suor jorrava-lhe da testa. Gritou:
- Morda, morda seu patrão!
A cadela teve dois ou três terríveis sobressaltos. Eu teria jurado que ela estava resistindo à ordem, que relutava. Ele repetiu:
- Morda-o!
Então, levantando-se, a cadela veio para meu lado. e eu recuei para junto da parede, fremindo de medo, o pé levantado para repeli-la.
Mas Jacques ordenou:
- Aqui, depressa!
Ela obedeceu-lhe. Então, com suas mãos enormes, ele pôs-se a esfregar a cabeça do animal, parecendo desembaraçá-lo de invisíveis liames.
Mirza reabriu os olhos:
- Pronto, está acabado, – disse Jacques.
Não ousei sequer tocá-la, e enxotei-a até à porta, por onde saiu. Caminhava lentamente, insegura, esgotada, e ouvi suas unhas novamente arranharem o chão.
Jacque; dirigiu-se a mim novamente:
- E isso não é tudo. 0 que mais me espanta, eis aqui, tome! Os objetos me obedecem também.
Ele tinha posto sobre a mesa uma espécie de corta, papel, de que me servia para cortar as páginas dos livros. Estendeu a mão para o objeto, que parecia rastejar, aproximando-se lentamente; e de súbito eu vi, sim, o corta- papel estremecer, depois agitar-se, deslizar suavemente, sozinho, sobre a madeira, rumo à mão que o aguardava, colocando-se-lhe entre os dedos.
Pus-me a gritar de terror. Também acreditei ter enlouquecido, mas o agudo de minha voz logo me acalmou.
Jacques recomeçou:
- Todos os objetos vêm, assim, à minha ordem. É por isso que oculto as mãos. Que será isso? Magnetismo, eletricidade, ímã? já não sei mais nada, porém, isso é horrível.
“E compreende você, também, por que é horrível? Quando estou só, assim que me encontro só, não posso impedir-me de atrair tudo quanto me rodeia.
“E passo dias inteiros mudando as coisas de lugar, não deixando nunca de experimentar esse abominável poder, como para verificar se ele não me deixou!
Ele havia metido de novo suas enormes mãos nos bolsos e olhava para as trevas, além da vidraça. Um pequeno ruído, um leve movimento pareceu sacudir a folhagem, por entre o arvoredo.
Era a chuva que começava a cair.
Murmurei:
- É espantoso!
Fie acrescentou:
- É horrível.
Um estrondo percorreu a folhagem, semelhante a uma rajada de vento. Era o aguaceiro, a pancada d’água, chovia torrencialmente.
Jacques começou a respirar a plenos pulmões, soerguendo o tórax.
- Deixe-me, – disse – a chuva vai acalmar-me. Neste momento, desejo ficar só.




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25 de out. de 2011

Van Gogh e o Hospital de Saint Paul em Saint-Rémy

 A Meadow in the Mountains - Le Mas de Saint-Paul

Garden of Saint-Paul Hospital, The

Le Mont Gaussier with the Mas de Saint-Paul

 Meadow in the Garden of Saint-Paul Hospital

Mountainous Landscape Behind Saint-Paul Hospital

 Pine Trees with Figure in the Garden of Saint-Paul Hospital

 Portrait of a Patient in Saint-Paul Hospital

Portrait of Doctor Felix Rey -  jan 1889

Portrait of Trabuc, an Attendant at Saint-Paul Hospital

  Self-Portrait with Bandaged Ear   -Jan 1889

 Self-Portrait with Bandaged Ear and Pipe

The Garden of Saint-Paul Hospital - 1889

 The Garden of Saint-Paul Hospital - december 1889

 The Garden of Saint-Paul Hospital with Figure

 The Garden of Saint-Paul Hospital,

The Garden of Saint-Paul Hospital,   october-1889

 The Stone Bench in the Garden of Saint-Paul Hospital

 Trees in the Garden of Saint-Paul Hospital..

 Trees in the Garden of Saint-Paul Hospital.

 Trees in the Garden of Saint-Paul Hospital

 View of the Church of Saint-Paul-de-Mausole

Wheat Field Behind Saint-Paul Hospital with a Reaper

Wheat Field Behind Saint-Paul Hospital

14 de out. de 2011

Só vim telefonar

"Só vim telefonar"

Gabriel García Márquez

Numa tarde de chuvas primaveris, quando viajava sozinha para Barcelona dirigindo um automóvel alugado, Maria de la Luz Cervantes sofreu uma pane no deserto dos Monegros. Era uma mexicana de 27 anos, bonita e séria, que anos antes tivera certo nome como actriz de variedades. Estava casada com um prestidigitador de salão, com quem ia se reunir naquele dia após visitar alguns parentes em Saragoça.
Depois de uma hora de sinais desesperados aos automóveis e caminhões que passavam directo pela tormenta, o chofer de um ónibus destrambelhado compadeceu-se dela. Mas avisou que não ia muito longe.
- Não importa - disse Maria. - Eu só preciso de um telefone.
Era verdade, e só precisava para prevenir seu marido que não chegaria antes das sete da noite. Parecia um passarinho ensopado, com um agasalho de estudante e sapatos de praia em abril, e estava tão atordoada por tudo que esqueceu de levar as chaves do automóvel. Uma mulher que viajava ao lado do chofer, de aspecto militar mas de maneiras doces, deu-lhe uma toalha e uma manta, e abriu espaço para ela ao seu lado. Depois de mais ou menos se secar, Maria sentou-se, enrolou-se na manta e tentou acender um cigarro, mas os fósforos estavam molhados.
A vizinha de assento deu-lhe fogo e pediu um cigarro dos poucos que estavam secos. Enquanto fumavam, Maria cedeu à vontade de desabafar e sua voz soou mais que a chuva e o barulho da lataria do ónibus.
A mulher interrompeu-a com o dedo nos lábios.
- Estão dormindo - murmurou.
Maria olhou por cima do ombro e viu que o ónibus estava ocupado por mulheres de idades incertas e condições diferentes que dormiam enroladas em mantas iguais à dela. Contagiada por sua placidez, Maria enroscou-se no assento e abandonou-se ao rumor da chuva. Quando despertou era de noite e o aguaceiro havia se dissolvido num sereno gelado.
Não tinha a menor ideia de quanto tempo havia dormido nem em que lugar do mundo estavam. Sua vizinha de assento tinha uma atitude alerta.
- Onde estamos? - perguntou Maria.
- Chegamos - respondeu a mulher.
O ónibus havia entrado no pátio empedrado de um edifício enorme e sombrio que parecia um velho convento num bosque de árvores colossais. As passageiras, iluminadas apenas por um farol do pátio, permaneceram imóveis até que a mulher de aspecto militar as fez descer com um sistema de ordens primárias, como em um jardim-de-infância. Todas eram mais velhas, e moviam-se com tal parcimónia na penumbra do pátio que pareciam imagens de um sonho. Maria, a última a descer, pensou que eram freiras. Pensou menos quando viu várias mulheres de uniforme que as receberam na porta do ónibus, e cobriam suas cabeças para que não se molhassem, e as colocavam em fila indiana, dirigindo-as sem falar com elas, com palmas rítmicas e peremptórias.
Depois de se despedir de sua vizinha de assento, Maria quis devolver-lhe a manta, mas ela falou que cobrisse a cabeça para atravessar o pátio e que a devolvesse na portaria.
- Será que lá tem telefone? - perguntou Maria.
- Claro - disse a mulher. - Lá mesmo eles mostram.
Pediu a Maria outro cigarro, e ela deu o resto do maço molhado. "No caminho eles secam", disse.
A mulher fez adeus com a mão, e quase gritou:
"Boa sorte.", O ónibus arrancou sem dar tempo para mais nada.
Maria começou a correr para a entrada do edifício.
Uma guarda tentou detê-la batendo palmas enérgicas, mas teve que apelar para um grito imperioso:
"Eu disse alto!", Maria olhou por baixo da manta, e viu uns olhos de gelo e um dedo inapelável indicando a fila. Obedeceu. Já no saguão do edifício separou-se do grupo e perguntou ao porteiro onde havia um telefone. Uma das guardas fez com que ela voltasse para a fila dando-lhe palmadinhas nas costas, enquanto dizia com modos muito suaves:
- Por aqui, gracinha, o telefone é por aqui.
Maria seguiu com as outras mulheres por um corredor tenebroso, e no final entrou em um dormitório colectivo onde as guardas recolheram as mantas e começaram a repartir as camas. Uma mulher diferente, que Maria achou mais humana e de hierarquia mais alta, percorreu a fila comparando uma lista com os nomes que as recém-chegadas tinham escrito num cartão costurado no sutiã. Quando chegou na frente de Maria surpreendeu-se que ela não levasse a identificação.
- É que só vim telefonar - disse Maria.
Explicou-lhe com muita pressa que seu automóvel havia quebrado na estrada. O marido, que era mago de festas, estava esperando por ela em Barcelona para cumprir três compromissos até a meia-noite, e queria avisá-lo que não chegaria a tempo para acompanhá-lo. Eram quase sete da noite. Ele sairia de casa dentro de dez minutos, e ela temia que cancelasse tudo por causa de seu atraso. A guarda pareceu escutá-la com atenção.
- Como é o seu nome? - perguntou.
Maria disse como se chamava com um suspiro de alívio, mas a mulher não encontrou seu nome depois de repassar a lista várias vezes. Perguntou alarmada a uma guarda, e esta, sem nada para dizer, sacudiu os ombros.
- É que eu só vim para telefonar - disse Maria.
- Está bem, beleza - disse a superiora, levando-a até a sua cama com uma doçura demasiado ostensiva para ser real -, se você se portar bem vai poder falar por telefone com quem quiser. Mas agora não, amanhã.
Alguma coisa aconteceu então na mente de Maria que a fez entender por que as mulheres do ónibus moviam-se como no fundo de um aquário. Na realidade, estavam apaziguadas com sedantes, e aquele palácio em sombras, com grossos muros de pedra e escadarias geladas, era na realidade um hospital de enfermas mentais. Assustada, escapou correndo do dormitório, e antes de chegar ao portão uma guarda gigantesca com um macacão de mecânico agarrou-a com um golpe de tigre e imobilizou-a no chão com uma chave mestra. María olhou-a de viés paralisada de terror.
- Pelo amor de Deus - disse. - Juro pela minha mãe morta que só vim telefonar.
Bastou ver sua cara para saber que não havia súplica possível diante daquela energúmena vestida de mecânico que era chamada de Herculina por sua força descomunal. Era a responsável pelos casos difíceis, e duas reclusas tinham morrido estranguladas com seu braço de urso-polar adestrado na arte de matar por descuido. O primeiro caso foi resolvido como sendo um acidente comprovado.
O segundo foi menos claro, e Herculina foi advertida e admoestada de que na próxima vez seria investigada a fundo. A versão corrente era que aquela ovelha desgarrada de uma família de sobrenomes grandes tinha uma turva carreira de acidentes duvidosos em vários manicómios da Espanha.
Para que Maria dormisse a primeira noite, tiveram que lhe injectar um sonífero. Antes do amanhecer, quando foi despertada pelo desejo de fumar, estava amarrada pelos pulsos e pelos tornozelos nas barras da cama. Ninguém acudiu aos seus gritos. Pela manhã, enquanto o marido não encontrava em Barcelona nenhuma pista de seu paradeiro, tiveram que levá-la à enfermaria, pois a encontraram sem sentidos num pântano de suas próprias misérias.
Não soube quanto tempo havia passado quando voltou a si. Mas então o mundo era um remanso de amor, e na frente de sua cama estava um ancião monumental, com um andar de plantígrado e um sorriso sedante, que com dois passes de mestre devolveu-lhe a alegria de viver. Era o director do sanatório.
Antes de dizer qualquer coisa, sem ao menos cumprimentá-lo, Maria pediu um cigarro. Ele deu, aceso, e também o maço quase cheio. Maria não pôde reprimir o pranto.
- Aproveite para chorar tudo que você quiser - disse o médico, com sua voz adormecedora.
Não existe melhor remédio que as lágrimas.
Maria desafogou-se sem pudor, como nunca havia conseguido com seus amantes casuais nos tédios de depois do amor. Enquanto a ouvia, o médico a penteava com os dedos, arrumava o travesseiro para que respirasse melhor, a guiava pelo labirinto de sua incerteza com uma sabedoria e uma doçura que ela jamais havia sonhado. Era, pela primeira vez em sua vida, o prodígio de ser compreendida por um homem que a escutava com toda a alma sem esperar a recompensa de levá-la para a cama. Após uma longa hora, desafogada até o fim, pediu-lhe autorização para telefonar para o seu marido.
O médico levantou-se com toda a majestade de seu cargo. "Ainda não, princesa", disse, dando em sua face o tapinha mais terno que ela jamais havia sentido. "Cada coisa tem sua hora.", Da porta, fez uma bênção episcopal, e desapareceu para sempre.
- Confie em mim - disse a ela.
Naquela mesma tarde, Maria foi inscrita no asilo com um número de série, e com um comentário superficial sobre o enigma da sua procedência e as dúvidas sobre sua identidade. Na margem ficou uma qualificação escrita a mão pelo director: agitada.
Tal como Maria havia previsto, o marido saiu de seu modesto apartamento do bairro de Horta com meia hora de atraso para cumprir os três compromissos.
Era a primeira vez que ela não chegava atempo em quase dois anos de uma união livre bem combinada, e ele entendeu o atraso pela ferocidade das chuvas que assolaram a província naquele fim de semana. Antes de sair deixou um recado pregado na porta com o itinerário da noite.
Na primeira festa, com todas as crianças disfarçadas de canguru, dispensou o truque-mor dos peixes invisíveis porque não conseguia fazê-lo sem a ajuda dela. O segundo compromisso era na casa de uma anciã de 93 anos, numa cadeira de rodas, que se vangloriava de haver celebrado cada um dos últimos trinta aniversários com um mago diferente.
Ele estava tão contrariado pela demora de Maria que não conseguiu se concentrar nos passes mais simples.
O terceiro compromisso era o de todas as noites num café-concerto das Ramblas, onde actuou sem inspiração para um grupo de turistas franceses que não conseguiram acreditar no que viam porque se negavam a crer na magia. Depois de cada representação telefonou para casa, e esperou sem ilusões que Maria atendesse. Na última já não pôde reprimir a inquietação de que algo de mau havia acontecido.
De volta para casa na caminhonete adaptada para as funções públicas viu o esplendor da primavera nas palmeiras do Paseo de Gracia, e foi estremecido pelo pensamento funesto de como poderia ser a cidade sem Maria. A última esperança se desvaneceu quando encontrou seu recado ainda pregado na porta. Estava tão contrariado que esqueceu de dar comida ao gato.
Só agora, ao escrever, percebo que nunca soube como era o nome dele na realidade, porque em Barcelona só o conhecíamos por seu nome profissional: o Mago Saturno. Era um homem de génio esquisito e com uma inabilidade social irredimível, mas o tacto e a graça que nele faziam falta sobravam em Maria. Era ela quem o guiava pela mão nesta comunidade de grandes mistérios, onde ninguém teria a ideia de ligar para alguém depois da meia-noite perguntando pela própria mulher. Saturno havia feito isso assim quando chegou e não queria recordar.
Por isso, naquela noite conformou-se com telefonar para Saragoça, onde uma avó meio adormecida respondeu sem alarma que Maria havia partido depois do almoço. Não dormiu mais de uma hora ao amanhecer.
Teve um sonho de pântano, no qual viu Maria com um vestido de noiva em farrapos e salpicada de sangue, e despertou com a certeza pavorosa de que havia tornado a deixá-lo sozinho, e agora para sempre, num vasto mundo sem ela.
Havia feito isso três vezes com três homens diferentes, ele inclusive, nos últimos cinco anos. Havia abandonado-o na Cidade do México seis meses depois de conhecê-lo, quando agonizavam de felicidade com um amor demente num quarto do bairro Anzures. Certa manhã, Maria não amanheceu em casa depois de uma noite de abusos inconfessáveis.
Deixou tudo que era dela, inclusive a aliança de seu casamento anterior, e uma carta na qual dizia que não era capaz de sobreviver ao tormento daquele amor desatinado. Saturno pensou que havia voltado ao seu primeiro marido, um condiscípulo da escola secundária com quem se casou às escondidas sendo menor de idade, e a quem abandonou por outro depois de dois anos sem amor. Mas não: havia regressado à casa de seus pais, e lá foi Saturno buscá-la a qualquer preço. Rogou sem condições, prometeu muito mais do que estava decidido a cumprir, mas tropeçou com uma determinação invencível.
"Existem amores curtos e amores longos", disse ela.
E concluiu sem misericórdia: "Este foi curto." Ele rendeu-se diante de seu rigor. No entanto, certa madrugada de um dia de Todos os Santos, ao voltar para o seu quarto de órfão depois de quase um ano de esquecimento, encontrou-a dormindo no sofá da sala com a coroa de flores de laranjeira e a longa cauda de espuma das noivas virgens.
Maria contou a verdade. O novo noivo, viúvo, sem filhos, com a vida resolvida e a disposição de se casar para sempre na igreja católica, havia deixado-a vestida de noiva esperando no altar. Seus pais decidiram fazer a festa do mesmo jeito. Ela acompanhou a brincadeira. Dançou, cantou com os mariachis, abusou da bebida, e num terrível estado de remorsos tardios foi procurar Saturno à meia-noite.
Ele não estava em casa, mas encontrou as chaves no vaso de flores do corredor, onde sempre as escondera. Daquela vez, foi ela quem se rendeu sem condições. "E agora até quando?", ele perguntou.
Ela respondeu com um verso de Vinicius de Moraes:
"O amor é eterno enquanto dura.", Dois anos depois, continuava sendo eterno.
Maria pareceu amadurecer. Renunciou a seus sonhos de actriz e consagrou-se a ele, tanto no ofício como na cama. No fim do ano anterior haviam assistido a um congresso de magos em Perpignan, e na volta conheceram Barcelona. Gostaram tanto que estavam ali fazia oito meses, e iam tão bem que haviam comprado um apartamento no bairro muito catalão de Horta, ruidoso e sem porteiro, mas com espaço de sobra para cinco filhos. Havia sido a felicidade possível, até o fim de semana em que ela alugou um automóvel e foi visitar seus parentes de Saragoça com a promessa de voltar às sete da noite da segunda. Ao amanhecer da quinta ainda não dera sinais de vida.
Na segunda-feira da semana seguinte a companhia de seguros do automóvel alugado telefonou para perguntar por Maria. "Não sei nada", disse Saturno. "Procurem em Saragoça." Desligou. Uma semana depois um guarda civil foi à sua casa com a notícia de que haviam achado o automóvel depenado, num atalho perto de Cádiz, a novecentos quilómetros do lugar em que Maria o abandonou. O policial queria saber se ela tinha mais detalhes do roubo. Saturno estava dando comida ao gato, e olhou-o apenas para dizer sem mais rodeios que não perdessem tempo, pois sua mulher havia fugido de casa e ele não sabia com quem ou para onde. Era tamanha sua convicção que o policial sentiu-se incomodado e pediu perdão pelas perguntas. O caso foi declarado encerrado.
O receio de que Maria pudesse ir embora outra vez havia assaltado Saturno na Páscoa em Cadaqués, onde Rosa Regàs os havia convidado para velejar.
Estávamos no Marítim, o populoso e sórdido bar da gauche divine no crepúsculo do franquismo, em volta de uma daquelas mesas de ferro com cadeiras de ferro onde só cabiam a duras penas seis e sentavam vinte.
Depois de esgotar o segundo maço de cigarros da jornada María percebeu que não tinha fósforos.
Um braço esquálido de pelos viris com uma pulseira de bronze romano abriu caminho através do tumulto da mesa e ofereceu-lhe fogo. Ela agradeceu sem olhar quem era, mas o Mago Saturno viu. Era um adolescente ósseo e lampinho, de uma palidez de morto e um rabo-de-cavalo de cabelos muito negros que chegavam até a sua cintura. As janelas do bar mal suportavam a fúria da tramontana da primavera, mas ele ia vestido com uma espécie de pijama de usar na rua, de algodão cru, e umas tamancas de lavrador.
Não tornaram a vê-lo até o fim do outono, numa pensão de mariscos de La Barceloneta, com o mesmo conjunto de saraça ordinária e uma longa trança em vez do rabo-de-cavalo. Cumprimentou-os como se fossem velhos amigos, e pelo modo com que beijou Maria, e pelo modo com que ela correspondeu, Saturno foi fulminado pela suspeita de que haviam andado se encontrando escondidos. Dias depois encontrou por acaso um nome novo e um número de telefone escritos na caderneta doméstica, e a inclemente lucidez dos ciúmes revelou-lhe de quem eram. O prontuário social do intruso acabou de liquidá-lo: 22 anos, filho único de ricos, decorador de vitrines da moda, com uma fama fácil de bissexual e um prestígio bem fundamentado como consolador de aluguel de mulheres casadas. Mas conseguiu superar tudo até a noite em que Maria não voltou para casa. Então começou a telefonar para ele todos os dias, primeiro a cada duas ou três horas, das seis da manhã até a madrugada seguinte, e depois cada vez que encontrava um telefone. O fato de que ninguém atendesse aumentava o seu martírio.
No quarto dia atendeu uma andaluza, que só ia fazer a faxina. "O sinhôzinho não está", disse, com um jeito vago o suficiente para enlouquecê-lo.
Saturno não resistiu à tentação de perguntar se por acaso a senhorita María não estava.
- Aqui não mora nenhuma Maria - disse a mulher. - O patrão é solteiro.
- Já sei disso - respondeu ele. - Não mora mas vai às vezes, não é?
A mulher se enfureceu.
- Mas quem está falando, porra?
Saturno desligou. A negativa da mulher pareceu-lhe uma confirmação a mais do que para ele já não era suspeita, era uma certeza ardente. Perdeu o controle. Nos dias seguintes telefonou em ordem alfabética para todos os conhecidos de Barcelona.
Ninguém informou nada, mas cada telefonema agravou sua infelicidade, porque seus delírios de ciúmes já eram célebres entre os madrugadores impenitentes da gauche divine, que respondiam com qualquer piada que o fizesse sofrer. Só então compreendeu até que ponto estava sozinho naquela cidade bela, lunática e impenetrável, na qual jamais seria feliz.
Pela madrugada, depois de dar comida ao gato, apertou o coração para não morrer, e tomou a determinação de esquecer Maria.
Depois de dois meses, Maria ainda não havia se adaptado à vida no sanatório. Sobrevivia mal e mal, comendo quase nada daquela pitança de cárcere com os talheres acorrentados à mesona de madeira bruta, e os olhos fixos na litografia do general Francisco Franco que presidia o lúgubre refeitório medieval. No começo resistia às horas canónicas com sua rotina palerma de matinas, laudes, vésperas, e a outros ofícios da igreja que ocupavam a maior parte do tempo. Negava-se a jogar bola no pátio do recreio e a trabalhar na oficina de flores artificiais que um grupo de reclusas mantinha com uma diligência frenética. Mas na terceira semana foi incorporando-se pouco a pouco à vida do claustro.
Afinal, diziam os médicos, todas começavam assim, e cedo ou tarde acabavam integrando-se na comunidade.
A falta de cigarros, resolvida nos primeiros dias por uma vigilante que os vendia a preço de ouro, tornou a atormentá-la quando acabou o pouco dinheiro que trouxera. Consolou-se depois com os cigarros de papel de jornal que algumas reclusas fabricavam com as guimbas recolhidas no lixo, pois a obsessão de fumar havia chegado a ser tão intensa quanto a do telefone. As pesetas exíguas que ganhou mais tarde fabricando flores artificiais permitiram a ela um alívio efémero.
O mais duro era a solidão das noites. Muitas reclusas permaneciam despertas na penumbra, como ela, mas sem se atrever a nada, pois a vigilante nocturna velava também no portão fechado com corrente e cadeado. Certa noite, porém, abrumada pela tristeza, María perguntou com voz suficiente para que sua vizinha de cama escutasse:
- Aonde estamos?
A voz grave e lúcida da vizinha respondeu:
- Nas profundas do inferno.
- Dizem que esta terra é de mouros - disse outra voz distante que ressoou no dormitório inteiro.
- E deve ser mesmo, porque no verão, quando há lua, ouvem-se cães ladrando para o mar.
Ouviu-se uma corrente nas argolas como uma âncora de galeão, e a porta se abriu. A cérbera, o único ser que parecia vivo no silêncio instantâneo começou a passear de um extremo a outro do dormitório. María se assustou, e só ela sabia por quê.
Desde sua primeira semana no sanatório, a vigilante noturna lhe havia proposto sem rodeios que dormisse com ela no quarto de guarda. Começou com um tom de negócio concreto: troca de amor por cigarros, por chocolates, pelo que fosse.
"Você vai ter de tudo", dizia, trémula. "Você vai ser a rainha.", Diante da recusa de María, a guarda mudou de método. Deixava papeizinhos de amor debaixo do travesseiro, nos bolsos do roupão, nos lugares menos imaginados. Eram mensagens de uma aflição dilacerante capaz de estremecer as pedras. Fazia mais de um mês que parecia resignada à derrota, na noite em que ocorreu o incidente no dormitório.
Quando se convenceu de que todas as reclusas dormiam, a guarda aproximou-se da cama de Maria, e murmurou em seu ouvido todo tipo de obscenidades ternas, enquanto beijava sua cara, o pescoço tenso de terror, os braços tesos, as pernas exaustas.
No fim, achando talvez que a paralisia de Maria não era de medo e sim de complacência, atreveu-se a ir mais longe. María deu-lhe então um golpe com as costas da mão que mandou-a contra a cama vizinha.
A guarda levantou-se furibunda no meio do escândalo das reclusas alvoroçadas.
- Filha da puta - gritou. - Vamos apodrecer juntas neste chiqueiro até que você fique louca por mim.
O verão chegou sem se anunciar no primeiro domingo de junho, e foi preciso tomar medidas de emergência, porque as reclusas sufocadas começavam a tirar durante a missa as batinas de lã.
María assistiu divertida ao espectáculo das enfermas peladas que as guardas tocavam pelas naves da capela como se fossem galinhas cegas. No meio da confusão, tratou de se proteger dos golpes perdidos, e sem saber como encontrou-se sozinha no escritório abandonado, e com um telefone que tocava sem cessar com uma campainha de súplica.
María respondeu sem pensar, e ouviu uma voz distante e sorridente que se distraía imitando o serviço de hora certa:
- São quarenta e cinco horas, noventa e dois minutos e cento e sete segundos.
- Veado - disse María.
Desligou divertida. Já ia embora, quando percebeu que estava deixando escapar uma ocasião irrepetível. Então discou seis números, com tanta tensão e tanta pressa, que não teve certeza de ser o número de sua casa. Esperou com o coração na boca, ouviu a campainha familiar com seu tom ávido e triste, uma vez, duas vezes, três vezes, e ouviu enfim a voz do homem de sua vida na casa sem ela.
- Alô?
Precisou esperar que passasse a bola de lágrimas que se formou na sua garganta.
- Coelho, minha vida - suspirou.
As lágrimas a venceram. Do outro lado da linha houve um breve silêncio de espanto, e a voz ensandecida pelos ciúmes cuspiu a palavra:
- Puta!
E desligou.
Naquela noite, num ataque frenético, Maria tirou da parede do refeitório a litografia do generalíssimo, arrojou-a com todas as suas forças contra o vitral do jardim, e desmoronou banhada em sangue. Ainda lhe sobrou raiva para enfrentar na porrada as guardas que tentaram dominá-la, sem conseguir, até que viu Herculina plantada no vão da porta, com os braços cruzados, olhando para ela. Rendeu-se. Ainda assim, foi arrastada até o pavilhão das loucas perigosas, foi aniquilada com uma mangueira de água gelada, e injectaram terebintina em suas pernas. Impedida de caminhar por causa da inflamação provocada, Maria percebeu que não havia nada no mundo que não fosse capaz de fazer para escapar daquele inferno.
Na semana seguinte, já de regresso ao dormitório comum, levantou-se na ponta dos pés e bateu na cela da guarda da noite.
O preço de Maria, exigido de antemão, foi levar um recado ao seu marido. A guarda aceitou, sempre que o trato fosse mantido no mais absoluto segredo. E apontou-lhe com um dedo inexorável.
- Se alguma vez alguém souber, você morre.
Desta forma o Mago Saturno foi parar no sanatório de loucas no sábado seguinte, com a caminhonete de circo preparada para celebrar o regresso de María. O director o recebeu em pessoa no seu escritório, tão limpo e arrumado quanto um barco de guerra, e fez um relatório afectuoso sobre o estado de sua esposa. Ninguém sabia de onde chegou, nem como nem quando, pois a primeira informação sobre sua entrada era o registro oficial ditado por ele mesmo quando a entrevistou. Uma investigação iniciada no mesmo dia não dera em nada. Porém, o que mais intrigava o director era como Saturno soube do paradeiro de sua esposa. Saturno protegeu a guarda.
- A companhia de seguros do automóvel me informou - disse.
O director concordou satisfeito. "Não sei como o seguro faz para saber tudo", disse. Deu uma olhada no expediente que tinha sobre sua escrivaninha de asceta, e concluiu:
- A única certeza é que seu estado é grave.
Estava disposto a autorizar uma visita com as devidas precauções se o Mago Saturno prometesse, pelo bem de sua esposa, restringir-se à conduta que ele indicasse. Sobretudo na maneira de tratá-la, para evitar que recaísse em seus acessos de fúria cada vez mais frequentes e perigosos.
- Que esquisito - disse Saturno. - Sempre foi de génio forte, mas de muito domínio.
O médico fez um gesto de sábio. "Há condutas que permanecem latentes durante muitos anos, e um dia explodem", disse. "Porém, é uma sorte que tenha caído aqui, porque somos especialistas em casos que requerem mão forte.", No final, fez uma advertência sobre a estranha obsessão de Maria pelos telefones.
- Deixe-a falar - disse.
- Fique tranquilo, doutor - disse Saturno com ar alegre. - É a minha especialidade.
A sala de visitas, mistura de cárcere e confessionário, era o antigo locutório do convento. A entrada de Saturno não foi a explosão de júbilo que ambos poderiam esperar. Maria estava de pé no centro do salão, junto a uma mesinha com duas cadeiras e um vaso sem flores. Era evidente que estava pronta para ir embora, com seu lamentável casaco cor de morango e sapatos sórdidos que havia ganho de esmola. Num canto, quase invisível, estava Herculina com os braços cruzados. María não se moveu ao ver o marido entrar nem mostrou emoção alguma na cara ainda salpicada pelos estragos do vitral.
Deram um beijo de rotina.
- Como você se sente? - perguntou ele.
- Feliz por você enfim ter vindo, coelho - disse ela. - Isto foi a morte.
Não tiveram tempo de sentar-se. Afogando-se em lágrimas, Maria contou as misérias do claustro, a barbárie das guardas, a comida de cachorro, as noites intermináveis sem fechar os olhos de terror.
- Já nem sei há quantos dias estou aqui, ou meses ou anos, mas sei que cada um foi pior que o outro - disse, e suspirou com a alma. - Acho que nunca voltarei a ser a mesma.
- Agora tudo isso passou - disse ele, acariciando com os dedos as cicatrizes recentes de sua cara.
- Eu continuarei a vir todos os sábados. E até mais, se o director permitir. Você vai ver como tudo dará certo.
Ela fixou nos olhos dele seus olhos aterrorizados.
Saturno tentou suas artes de salão. Contou, no tom pueril das grandes mentiras, uma versão adocicada dos prognósticos do médico. "Em resumo", concluiu, "ainda faltam alguns dias para você estar recuperada de vez.", María entendeu a verdade.
- Por Deus, coelho! - disse, atónita. - Não me diga que você também acha que estou louca!
- Nem pense nisso! - disse ele, tratando de rir. - Acontece que será muito mais conveniente para todos que você fique aqui algum tempo. Em melhores condições, é claro.
- Mas se eu já te disse que só vim telefonar! - falou María.
Ele não soube como reagir à obsessão temível.
Olhou para Herculina. Ela aproveitou a olhada para indicar em seu relógio de pulso que estava na hora de terminar a visita. María interceptou o sinal, olhou para trás, e viu Herculina na tensão do assalto iminente. Então agarrou-se no pescoço do marido gritando como uma verdadeira louca. Ele safou-se com todo o amor que pôde, e deixou-a à mercê de Herculina, que saltou sobre suas costas.
Sem dar-lhe tempo para reagir, aplicou em María uma chave com a mão esquerda, passou o outro braço de ferro em volta de seu pescoço, e gritou para o Mago Saturno:
- Vá embora!
Saturno fugiu apavorado.
Ainda assim, no sábado seguinte, já reposto do espanto da visita, voltou ao sanatório com o gato vestido como ele: a malha vermelha e amarela do grande Leopardo, o chapéu de copa e uma capa de volta e meia que parecia feita para voar. Entrou com a caminhonete de feira até o pátio do claustro, e ali fez uma função prodigiosa de quase três horas que todas as reclusas desfrutaram dos balcões, com gritos discordantes e ovações inoportunas. Estavam todas, menos María, que não só se negou a receber o marido, como sequer quis vê-lo dos balcões. Saturno sentiu-se ferido de morte.
- É uma reacção típica - consolou o director.
- Já passa.
Mas não passou nunca. Depois de tentar muitas vezes ver María de novo, Saturno fez o impossível para que recebesse uma carta, mas foi inútil.
Quatro vezes devolveu-a fechada e sem comentários.
Saturno desistiu, mas continuou deixando na portaria do hospital as rações de cigarros, sem ao menos saber se chegavam a María, até que a realidade o venceu.
Nunca mais se soube dele, exceto que tornou a se casar e que voltou ao seu país. Antes de ir embora de Barcelona deixou o gato meio morto de fome com uma namoradinha casual, que além disso se comprometeu a continuar levando cigarros para María. Mas também ela desapareceu. Rosa Regàs recordava ter visto a moça no Corte Inglês, há uns doze anos, com a cabeça rapada e a túnica alaranjada de alguma seita oriental, grávida até não poder mais. Ela contou-lhe que continuara levando cigarros para María, sempre que pôde, e resolvendo para ela algumas urgências imprevistas, até o dia em que só encontrou os escombros do hospital, demolido como uma lembrança ruim daqueles tempos ingratos. María pareceu-lhe muito lúcida na última vez em que a viu, um pouco acima do peso e contente com a paz do claustro. Naquele dia, levou-lhe também o gato, porque havia acabado o dinheiro que Saturno deixou para a comida.
Abril de 1978

In “Doze contos peregrinos”