Este espaço se propõe a reunir material sobre loucura e todo o aparato que a envolve. Espaço para memória, videos, leituras, noticias e tudo o mais que nos cair em mãos em nossa tarefa diária de pensar sobre o tema.Também postaremos materiais que, ainda que não se relacionem diretamente com o tema, esclarecem o pensamento de autores importantes para se chegar lá. Doiduras, maluquices, vesânias de toda sorte serão bem vindas.

19 de dez. de 2011

L'ABÉCÉDAIRE DE GILLES DELEUZE - U de UNO




(O abecedario de Gilles Deleuze. -Entrevista feitas a Deleuze por Claire Parnet. Retirada da internet -- em O estrangeiro.net --, a tradução que se segue não revela o nome do bem intencionado internauta que a fez. De qualquer forma lhe somos gratos.) 



U de Uno
CP: U, V, W, X, Y, Z. É o fim e vamos ser rápidos. U de Uno; V de Viagem; W de Wittgenstein, X, o Desconhecido, Y vamos deixar para os neo-platonicianos e Z fecha e ilumina. U é Uno.
GD: Uno.
CP: Sim, Uno. A Filosofia ou a Ciência cuidam do universal. No entanto, você diz que a Filosofia deve manter contato com as singularidades. Existe um paradoxo?
GD: Não há paradoxo, porque a Filosofia, e até mesmo a Ciência, não tem nada a ver com o universal. São idéias preconcebidas de opiniões. A opinião sobre a Filosofia é que ela cuida do universal. E a opinião sobre a Ciência é que ela cuida de fenômenos universais que podem se repetir. Mesmo se pegar a fórmula de que todo corpo cai, o importante não é que todos os corpos caem e, sim, a queda e as singularidades da queda. Que as singularidades científicas como as da matemática, da física ou da química, como ponto de congelamento, sejam reproduzíveis, tudo bem, mas e daí? São fenômenos secundários, processos de universalização. Mas a Ciência não cuida de universais, mas de singularidades. Quando é que um corpo muda de estado e passa do líquido para o sólido, etc.? A Filosofia não cuida do Uno, do ser, nada disso.Tudo isso é besteira! Também ela cuida de singularidades. Seria preciso perguntar o que são as multiplicidades. As multiplicidades são conjuntos de singularidades. A fórmula da multiplicidade é "n menos 1". Ou seja, o 1 é sempre o que deve ser subtraído. Acho que há dois erros que não devem ser cometidos. A Filosofia não cuida de universais. Há três universais. Poderíamos relacioná-los. Há os universais de contemplação, as Idéias, com um I maiúsculo. Há os universais de reflexão e os universais de comunicação. É o último refúgio da Filosofia dos universais. Habermas gosta muito dos universais de comunicação. Isso implica definir a Filosofia como contemplação, como reflexão ou como comunicação. Os três casos são cômicos. É uma palhaçada. O filósofo que contempla, tudo bem, é muito engraçado. O filósofo que reflete não é engraçado. É pior, porque ninguém precisa de um filósofo para refletir. Os matemáticos não precisam de um filósofo para refletir, um artista não precisa procurar um filósofo para refletir sobre a pintura ou a música. Boulez não precisa dele para refletir sobre música. Dizer que a Filosofia é uma reflexão segura é desprezar a Filosofia e o motivo de sua reflexão. Não precisa de Filosofia para refletir. Quanto à comunicação, nem se fala! A idéia de que a Filosofia seja um consenso para comunicar a partir dos universais da comunicação é a idéia mais divertida que já vi. A Filosofia não tem nada a ver com comunicação. A comunicação se basta. É uma questão de opinião e de consenso de opinião. É a arte das interrogações. A Filosofia não tem nada a ver. Como já disse, a Filosofia cria conceitos. Não é comunicar. A Arte não é comunicativa, não é reflexiva, nem a Ciência, nem a Filosofia. Não é contemplativa, nem reflexiva, nem comunicativa. É criativa. Nada mais. A fórmula é "n menos 1", eliminar a unidade, eliminar o universal.
CP: Então, os universais não têm nada a ver com Filosofia?
GD: Não, nada a ver.

L'ABÉCÉDAIRE DE GILLES DELEUZE - T de TENIS

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(O abecedario de Gilles Deleuze. -Entrevista feitas a Deleuze por Claire Parnet. Retirada da internet -- em O estrangeiro.net --, a tradução que se segue não revela o nome do bem intencionado internauta que a fez. De qualquer forma lhe somos gratos.) 


T de Tênis
CP: T de Tênis.
GD: Tênis!
CP: Você sempre gostou de tênis. Há uma famosa história em que você, criança, foi pegar um autógrafo de um grande jogador sueco e viu que pegou o autógrafo do rei da Suécia.
GD: Mas eu já sabia que era ele! Ele já era centenário. Tinha um monte de seguranças. Eu fui pedir um autógrafo ao rei da Suécia. O jornal Le Figaro tinha me fotografado. Havia uma foto onde um menino pedia um autógrafo ao velho rei da Suécia. Era eu.
CP: E quem era o grande jogador sueco?
GD: Era Borotra. Não era um grande jogador sueco. Era o guarda-costas do rei, que jogava tênis com ele e o treinava. Ele me chutava para eu não me aproximar do rei. Mas o rei foi muito bonzinho. Borotra também ficou bonzinho. Não é um momento brilhante na vida de Borotra.
CP: Houve outros ainda piores de Borotra. É o único esporte que assiste na TV?
GD: Não, eu adorava futebol também. O que mais? Acho que é só: tênis e futebol.
CP: Você jogou tênis?
GD: Sim, muito. Até a guerra. Sou uma vítima da guerra.
CP: O que muda em seu corpo quando pratica tênis e depois deixa de praticar? Muda alguma coisa?
GD: Não sei, acho que não. Para mim, não mudou nada, Não era um profissional. Eu tinha 14 anos em 1939. Eu parei de jogar tênis aos 14 anos e não foi um drama.
CP: Você foi uma revelação?
GD: Até que eu jogava bem para a minha idade. Só fazia isso.
CP: Estava classificado?
GD: Não, só tinha 14 anos. Além do mais, não havia o desenvolvimento que há hoje.
CP: Praticou outro esporte, o boxe francês, não?
GD: Lutei um pouco de boxe, mas me machucaram e parei logo. Mas fiz um pouco.
CP: Acha que o tênis mudou muito desde sua juventude?
GD: Todos os esportes! São meios de variações. E voltamos ao problema do estilo. O esporte é muito interessante porque está ligado às atitudes do corpo. Há uma variação das atitudes do corpo, as quais se estendem ao longo de períodos de tempo relativamente prolongados. É claro que não se pulam arbustos hoje como se pulavam há 50 anos. Arbustos ou outra coisa... É preciso classificar as variáveis na história dos esportes, pois há variáveis de tática. No futebol, as táticas mudaram muito desde a minha infância. Há variáveis de atitude, de posturas de corpo. Há variáveis que geram implicações. Houve uma época em que me interessei por lançamento de peso. Não para praticá-lo, mas porque os gabaritos dos lançadores de peso evoluíram rapidamente. Tratava-se de força, mas como recuperar velocidade com lançadores muito fortes? Tratava-se também de gabaritos rápidos, mas, usando a velocidade como primeiro elemento, como recuperar a força? É muito interessante. O sociólogo Mauss havia lançado um estudo sobre as atitudes do corpo nas civilizações. O esporte é uma área fundamental das variações das atitudes. No tênis, antes da guerra, — eu me lembro bem dos campeões da época —, as atitudes eram muito diferentes. O que me interessava muito — e voltamos à questão do estilo — eram os campeões que são realmente criadores. Há dois tipos de campeões que não têm o mesmo valor para mim: os criadores e os não-criadores. Os não-criadores são aqueles que usam um estilo já existente como uma força inigualável, como Lendl, por exemplo, que não é criador em tênis. E os grandes criadores. Esses são os que inventam novas jogadas e introduzem novas táticas. E nisso tudo, há uma série de seguidores. Os grandes estilistas são os inventores. Eles também existem nos esportes. Qual foi a grande virada do tênis? Foi a sua proletarização, mas com a devida relatividade. Tornou-se um esporte popular... Mais para jovens executivos do que proletários, mas, mesmo assim, vou falar em proletarização do tênis. Havia movimentos profundos que justificavam o ocorrido, mas isso não teria acontecido sem a existência de um gênio. Borg foi o responsável. Por quê? Porque trouxe o estilo de um tênis popular. Foi preciso que ele o criasse. Depois, outros campeões o seguiram, mas não eram criadores, como Vilas, etc. Mas Borg me convém perfeitamente, por causa de sua cara de Cristo. Ela tinha aquela expressão crística, aquela extrema dignidade, o fato de ser respeitado por todos os jogadores.
CP: Você estava dizendo: "Eu assisti...".
GD: Sim, eu assisti muita coisa em tênis, mas quero fechar sobre o Borg. Borg é um personagem crístico. Garante o esporte popular, cria o tênis popular. Isso implica na total invenção de um novo jogo. Há uma série de campeões de valor como Vilas, mas que vieram impor um jogo soporífico. Mas sempre voltamos àquela lei: "Vocês estão me elogiando e estou a cem léguas do que queria fazer". Pois Borg muda. Quando sente que deu certo, ele muda, não o interessa mais e ele evolui. O estilo de Borg evoluiu, enquanto que os "burocratas" mantinham a mesma coisa. O anti-Borg era o McEnroe.
CP: Qual era o estilo proletário de Borg?
GD: Um estilo de fundo de área, recuo total, e o liftage... e a proximidade da rede. Qualquer proletário ou executivo menor pode entender este jogo. Mas não disse que poderia jogar assim. O princípio do jogo de Borg é o contrário dos princípios aristocráticos. São princípios populares, só que faltava um gênio para revelá-los. Borg é exatamente como Jesus Cristo. É um aristocrata que se dirige ao povo. Estou dizendo besteiras... Borg foi impressionante. Muito curioso. Um grande criador no esporte. E havia McEnroe, que era um aristocrata puro, um aristocrata meio egípcio, meio russo. Saque egípcio, alma russa. Inventava jogadas que ele sabia que ninguém poderia fazer igual. De fato, ele inventava jogadas prodigiosas. Ele inventou uma que é colocar a bola. Não bate nela, só a coloca. Ele fez uma série de saques-cortadas que eram conhecidos, mas os de McEnroe foram renovados por completo. Poderia falar de muitos outros. Mas há outro grande, mas que não tem a mesma importância. É outro americano, esqueci o nome dele.
CP: Connors.
GD: Sim, nele vemos o princípio aristocrático da bola sem efeito e dando uma rasante na rede. Este é um princípio aristocrático. E o toque de raquete em desequilíbrio. Nunca ninguém teve tanto gênio quanto ele em desequilíbrio. São jogadas muito curiosas. Há uma história dos esportes, mas isso vale para todos. É exatamente como na Arte. Existem os criadores, os seguidores, as mudanças, as evoluções, a história e há o devir do esporte.
CP: Você começou dizendo "Eu assisti...".
GD: É mais um detalhe. Às vezes é difícil determinar a origem de uma jogada. Antes da guerra, havia os australianos. Aí, existem questões de nações. Porque foram os australianos que trouxeram a rebatida cruzada com duas mãos. No início, só os australianos o faziam, pelo que me lembro. É uma invenção australiana. Por que os australianos? Não sei, mas deve ter um motivo. Mas eu me lembro de uma jogada que tinha me impressionado quando menino porque não tinha efeito nenhum. Víamos que o adversário geralmente errava e pensávamos: "Por quê?". Era uma jogada sem graça. Mas, pensando bem, percebíamos que era na rebatida. O adversário sacava e o jogador rebatia a bola. Ele rebatia com pouca força, mas tinha a propriedade de cair exatamente na ponta dos dedos do pé daquele que sacou e que recebia a bola de volta. Ele não conseguia pegá-la. Era uma jogada estranha. Nós pensávamos: "Mas o que é isso?". Não entendíamos bem por que era uma jogada tão bem-sucedida e impressionante. Acho que o primeiro a ter sistematizado esta jogada foi um grande jogador australiano que se chamava Brownwich. Ele devia ser do pós-guerra. Não me lembro bem. Foi um grande jogador e um criador de jogadas. Quando rapaz, eu me lembro bem disso, era impressionante. Hoje, é uma jogada clássica, todos fazem isso. Mas é o caso de uma invenção de jogada; a geração de Borotra não conhecia este tipo de rebatida.
CP: Para fechar o assunto, quando McEnroe reclama e insulta o juiz, aliás, ele xinga a si próprio mais do que ao juiz, é uma questão de estilo porque não gostou de sua expressão?
GD: Não, é uma questão de estilo porque faz parte do estilo dele. É uma descarga nervosa. Como um orador pode ficar furioso, mas há oradores glaciais. Sim, faz parte do estilo. É a alma. Como se diria em alemão, é a Gemüt.
CP: Agora, U de Uno.
GD: Uno!