-- Tradução de Bruno Penteado da Universidade de São Paulo
Retirado da REVISTA LITTERIS No 2 www.revistaliteris.com.br -Maio 2009 --
No outono de 18--, durante uma viagem pelas províncias do extremo-sul da França, meu itinerário levou-me a algumas milhas de certa Maison de Santé, ou manicômio privado, de que ouvira muito, em Paris, de amigos médicos. Como nunca havia visitado um lugar como esse, julguei a oportunidade boa demais para ser perdida; propus, assim, ao meu companheiro de viagem (um cavalheiro que casualmente conhecera dias antes) que desviássemos nossa rota, por uma hora ou pouco mais, e déssemos uma espiada no estabelecimento. Ele objetou – alegando pressa, num primeiro momento, e, num segundo, natural horror à visão de um lunático. Implorou-me, contudo, não permitir que qualquer cortesia para com ele interferisse na satisfação de minha curiosidade e disse que prosseguiria seu passeio vagarosamente, para que eu pudesse alcançá-lo ainda naquele dia, ou, o mais tardar, no próximo. Enquanto se despedia de mim, pensei que talvez encontrasse alguma dificuldade de acesso às dependências e mencionei-lhe meus receios. Ele respondeu que, de fato, ao menos que conhecesse pessoalmente o diretor, Monsieur Maillard, ou tivesse alguma credencial por escrito, certa dificuldade poderia se apresentar, uma vez que o regulamento de tais hospícios privados era mais rígido que as leis dos hospitais públicos. Contudo, ele acrescentou que, alguns anos antes, havia conhecido Maillard e poderia me assistir, levando-me à porta e apresentando-me, embora seus sentimentos relativos à ‘loucura’ não lhe permitissem entrar na casa.
Agradeci, e, deixando a estrada principal, entramos numa senda de mato alto que, meia hora mais tarde, quase se perdia numa densa floresta, que cobria a base de uma montanha. Por cerca de duas milhas, cavalgamos pelo bosque úmido e sombrio, quando então a Maison de Santé surgiu à vista. Era um fantástico château, muito danificado e na verdade pouco habitável, por sua aparência antiga e descuidada. Seu aspecto encheu-me de absoluto terror e, refreando meu cavalo, quase decidi retornar. Logo depois, entretanto, envergonhei-me de minha fraqueza e fui em frente.
Ao nos aproximarmos do portão, notei-o entreaberto e vi também o rosto de um homem espiando por ele. Um instante depois, o homem aproximou-se, dirigiu-se a meu companheiro pelo nome, apertou-lhe a mão cordialmente e implorou-lhe que apeasse. Era Monsieur Maillard em pessoa. Era um robusto e bem-apessoado cavalheiro da velha escola, com maneiras polidas e certo ar de gravidade, dignidade e autoridade que impressionava.
Meu amigo, após me apresentar, mencionar meu desejo de examinar o estabelecimento e receber de Monsieur Maillard a garantia de que ele me daria toda a atenção, tomou seu rumo, e eu não mais o vi.
Quando ele já havia ido embora, o diretor conduziu-me a uma sala pequena e muito bem arrumada que continha, entre outras indicações de gosto refinado, vários livros, desenhos, vasos de flor e instrumentos musicais. Um fogo aconchegante ardia na lareira. A um piano, cantando uma ária de Bellini, sentava-se uma bela jovem, que, quando de minha entrada, interrompeu o canto e recebeu-me com graciosa cortesia. Sua voz era baixa, e suas maneiras, lânguidas. Acreditei também obervar indícios de pesar em seu semblante, excessivamente pálido, embora isso não fosse desagradável ao meu gosto. Trajava denso luto e suscitou em meu peito um sentimento misto de respeito, interesse e admiração.
Eu ouvira dizer, em Paris, que a instituição de Monsieur Maillard era administrada segundo o que é vulgarmente chamado de ‘sistema de apaziguamento’ – que todas as punições eram evitadas, raramente se recorria ao confinamento e, embora secretamente observados, os pacientes recebiam considerável liberdade, ainda que aparente, e a maioria podia perambular pela casa e por toda a área, vestindo-se como pessoas de cabeça certa.
Tendo em vista essas impressões, fui cauteloso com o que disse na presença da jovem, pois não estava certo se era sã, e de fato havia certo brilho irrequieto em seus olhos que, de algum modo, me fez imaginar que não o era. Restringi meus comentários, desse modo, a tópicos gerais, àqueles que julguei não serem desagradáveis ou inquietantes nem mesmo a um lunático. Ela respondeu de maneira perfeitamente racional a tudo o que eu disse; mesmo suas próprias observações eram marcadas pelo mais firme bom senso; porém, longa familiaridade com a metafísica da mania me ensinara a não dar crédito a tais evidências de sanidade, e assim continuei a empregar, durante a conversação, a cautela com que a iniciara.
Logo um elegante criado de libré trouxe-nos uma bandeja com frutas, vinho e outros aperitivos, que provei; a jovem deixou o recinto pouco tempo depois. Assim que saiu, voltei os olhos inquiridoramente ao meu anfitrião:
— Não, ele respondeu, oh, não! Ela é um membro de minha família – minha sobrinha, uma mulher muito prendada.
— Peço mil perdões pela suspeita, repliquei, mas com certeza o senhor me perdoará. A excelente administração de suas tarefas é bem conhecida em Paris, e pensei ser possível, o senhor sabe –
— Sim, sim, não é necessário dizer mais nada, eu é que devo agradecer pela louvável prudência que o senhor demonstrou. Raramente encontramos tanta cautela em rapazes; mais de uma vez, alguns infelizes contretemps ocorreram como consequência da falta de cuidado por parte de nossos visitantes. Enquanto meu antigo sistema estava em operação, e aos meus pacientes era permitido o privilégio de perambular à vontade, geralmente entravam em um perigoso frenesi causado por pessoas imprudentes que apareciam para inspecionar a casa. Desse modo, fui obrigado a impor um rígido sistema de exclusão, e mais ninguém em cuja prudência eu não pudesse confiar obteve acesso às dependências.
— Enquanto seu antigo sistema estava em operação! — disse eu, repetindo suas palavras. — O senhor quer dizer, portanto, que seu “sistema de apaziguamento”, de que tanto ouvi falar, não está mais em prática?
— Já faz, ele respondeu, algumas semanas que decidimos abandoná-lo para sempre.
— Realmente, o senhor me espanta!
— Achamos, senhor, disse ele, suspirando, inteiramente necessário retomar as práticas antigas. O perigo do sistema de apaziguamento sempre foi apavorante, e suas vantagens têm sido excessivamente superestimadas. Creio, senhor, que nesta casa foi justamente posto à prova, se é que o foi em alguma outra. Fizemos tudo o que o gênero humano poderia sugerir. Sinto não haver podido nos visitar anteriormente, pois teria a chance de julgá-lo por si mesmo. Mas presumo que esteja familiarizado com a prática de apaziguamento – com seus detalhes.
— Não inteiramente. O que ouvi foi de terceira ou quarta mão.
— Posso descrevê-lo, em termos gerais, como um sistema em que os pacientes eram ménagés, contentados. Não contradizíamos quaisquer fantasias que entravam na cabeça do enlouquecido; pelo contrário: não apenas as tolerávamos como as estimulávamos. Muitas de nossas curas definitivas foram efetuadas desse modo. Não há outro argumento que opere tanto na frágil razão do louco como a reductio ad absurdum1. Tivemos homens, por exemplo, que se imaginavam frangos. A cura consistia em tomar a ideia como um fato, acusar o paciente de estupidez por não a perceber competentemente como um fato, e assim negar-lhe, por uma semana, qualquer outro tipo de dieta que não fosse propriamente típica a um frango. Desse modo, um pouco de milho e cascalho faziam maravilhas!
— Mas tudo se resumia a essa espécie de aquiescência?
— De modo algum. Púnhamos bastante fé em divertimentos bem simples, como música, dança, exercícios de ginástica em geral, baralho, certas classes de livros, e assim por diante. Simulávamos tratar em cada indivíduo algum tipo comum de desarranjo físico; a palavra ‘demência’ nunca era empregada. Um ponto importante era fazer cada lunático vigiar as ações de todos os outros. Confiar no entendimento ou juízo de um louco é ganhá-lo de corpo e alma. Desse modo, pudemos prescindir de um dispendioso corpo de guardas.
— E não havia punição de qualquer espécie?
— Nenhuma.
— E o senhor nunca confinava seus pacientes?
— Muito raramente. Uma vez ou outra, no caso de a doença de um indivíduo culminar em crise, ou inesperadamente se transformar em fúria, nós o conduzíamos a uma cela secreta, para que sua perturbação não afetasse o resto, e lá o mantínhamos até que pudéssemos liberá-lo aos seus – pois nada temos com o maníaco feroz. Ele geralmente é transferido aos hospitais públicos.
— E agora o senhor mudou tudo isso. Pensa que foi para o melhor?
— Decididamente. O sistema tinha suas desvantagens e até mesmo seus perigos. Felizmente, agora ele está desacreditado em todas as Maisons de Santé da França.
— Estou muito surpreso, eu disse, com o que me fala, pois estava certo de que, no presente momento, não existisse outro método de tratamento para a loucura em qualquer parte do país.
— Ainda é muito jovem, meu caro, replicou meu anfitrião, mas virá o tempo em que aprenderá a julgar por si só o que acontece no mundo sem confiar na tagarelice dos outros. Não acredite em nada do que ouvir, e apenas em metade do que vir. Agora, sobre nossas Maisons de Santé, está claro que algum ignorante o iludiu. Após o jantar, no entanto, quando estiver suficientemente recuperado da fadiga de sua viagem, terei prazer em lhe mostrar a casa e lhe apresentar um sistema que, na minha opinião e na de todos que já testemunharam seu funcionamento, é incomparavelmente o mais eficaz já elaborado.
— É seu próprio sistema? — inquiri, — um de sua própria invenção?
— Tenho orgulho, ele replicou, de admitir que sim, pelo menos em certa medida.
Segui conversando com Monsieur Maillard por uma hora ou duas, período em que ele me mostrou os jardins e estufas do local.
— Não posso deixá-lo ver meus pacientes no presente momento, ele disse. A uma mente sensível, há sempre uma espécie de choque em tais exibições, e não quero estragar seu apetite para o jantar. Comeremos. Posso lhe servir vitela à la Menehoult, com couve-flor em molho velouté; depois disso, um cálice de Clos-Vougeot. Então, sim, seus nervos estarão suficientemente preparados.
Às seis, anunciou-se o jantar, e meu anfitrião conduziu-me a uma grande salle à manger, onde um numeroso grupo estava reunido – vinte e cinco ou trinta, no total. Eram, aparentemente, pessoas de distinção – certamente de alta estirpe –, apesar de suas vestimentas, pensei, serem extravagantemente pomposas, fazendo uso excessivo do ostentoso requinte da vielle cour. Notei que pelo menos dois terços desses hóspedes eram mulheres, e algumas delas de modo algum se vestiam de acordo com o que um parisiense consideraria de bom gosto no momento. Muitas mulheres, por exemplo, cuja idade não poderia ser menor que setenta, estavam enfeitadas com uma profusão de jóias, tais como aneis, pulseiras e colares, e tinham o busto e os braços vergonhosamente à mostra. Observei, também, que muito poucos desses vestidos eram bem-feitos – ou, ao menos, que muito poucos serviam em suas portadoras. Olhando ao redor, avistei a interessante moça a quem Monsieur Meillard me apresentara no pequeno saguão; mas qual não foi minha supresa ao vê-la vestindo uma saia-balão com merinaque, sapatos de salto alto e uma imunda touca de renda de Bruxelas, tão grande para ela que lhe deixava o rosto com uma ridícula expressão diminuta. Quando a vira pela primeira vez, ela estava convenientemente vestida de luto denso. Havia, em suma, um ar de estranheza na roupagem de todo o grupo que, num primeiro momento, me fez retornar à minha idéia inicial do ‘sistema de apaziguamento’ e imaginar que Monsieur Maillard houvera desejado enganar-me até após o jantar, para que eu não experimentasse sensações desconfortáveis durante a refeição ao saber que comia junto a lunáticos. Mas me recordei de haver sido informado, em Paris, de que os provincianos do sul eram peculiarmente excêntricos, com grande número de conceitos antiquados; bastou conversar com alguns membros do grupo para minhas apreensões serem completa e imediatamente desfeitas.
O salão de jantar, apesar de suficientemente confortável e de boas dimensões, era de pouca elegância. Por exemplo, o chão não tinha carpete, ainda que, na França, carpetes sejam geralmente dispensáveis. Quantos às janelas, tampouco tinham cortinado; suas folhas, fechadas, eram seguramente fixadas com barras de ferro, dispostas diagonalmente, do mesmo modo que as grades de uma butique. O recinto, observei, formava por si só uma ala do château; desse modo, as janelas se localizavam em três lados do paralelograma, estando a porta no outro. Havia não menos que dez janelas no total.
A mesa estava soberbamente posta, carregada de baixelas e ainda mais carregada de iguarias. A profusão era completamente bárbara: havia carne suficiente para saciar todos os Anaquins. Nunca, em toda a minha vida, havia visto tão extravagante, tão imoderado dispêndio das boas coisas da vida. Os arranjos, contudo, pareciam de muito pouco gosto, e meus olhos, acostumados a luzes discretas, eram lamentavelmente perturbados pela imensa claridade de uma abundância de velas de cera, em candelabros de prata, postas sobre a mesa e por todo o recinto, em qualquer canto onde fora possível achar espaço. Havia diversos hábeis criados em serviço, e, a uma ampla mesa, na mais distante extremidade do recinto, assentavam-se sete ou oito pessoas com rabecas, pífaros, trombones e um tambor. Esses companheiros muito me incomodavam, de tempo em tempo, no decorrer do jantar, com uma infinita variedade de ruídos, que eles tomavam por música, e que, aparentemente, proporcionavam muito entretenimento a todos os presentes, exceto a mim.
De modo geral, não podia deixar de pensar que tudo o que via tinha algo de bizarre – contudo, o mundo é feito de todos os tipos de pessoas, com vários modos de pensar e diferentes tipos de hábitos convencionais. Além disso, eu havia viajado o suficiente para já ser competente em nil admirari2; assim, tranqüilamente tomei meu assento, ao lado direito de meu anfitrião, e, estando com excelente apetite, fiz juz à boa comida posta em minha frente.
A conversa, enquanto isso, era genérica e espirituosa. As mulheres, como de costume, falavam muito. Logo descobri que quase todo o grupo era bem educado, e meu anfitrião era uma fonte de anedotas bem-humoradas. Ele parecia bem disposto a falar de seu cargo como diretor de uma Maison de Santé; e, realmente, o tópico ‘loucura’ era, para minha grande surpresa, o favorito entre todos os presentes. Muitas histórias divertidas, referentes a caprichos de pacientes, foram contadas.
— Uma vez tivemos um companheiro, disse um pequeno e redondo senhor sentado ao meu lado, um companheiro que se imaginava um bule de chá! Por falar nisso, não é realmente excepcional a frequência com que essa ideia específica tem surgido no cérebro do lunático? Não deve haver um asilo de loucos na França onde não se possa encontrar um bule de chá humano. Nosso cavalheiro era um bule de chá de metal bretanha3 e cuidava lustrar-se toda manhã com camurça e branco-de-espanha.
— Também, disse um homem alto, à frente, tivemos aqui, não faz muito tempo, uma pessoa que botara na cabeça que era um asno, o que, alegoricamente falando, era verdade. Era um paciente problemático, e tivemos muita dificuldade em mantê-lo nos limites. Por um longo tempo, ele não comia nada a não ser cardo; mas logo o curamos dessa ideia, quando insistimos que não comesse outra coisa. Além disso, ele constantemente se punha a dar coices – assim! – assim! –
— Sr. De Kock! Peço que se comporte! — interrompeu uma velha senhora, que estava sentada ao seu lado. — E, por favor, mantenha seus pés perto de si! O senhor arruinou meu brocado! Diga-me: é necessário ilustrar seu comentário de maneira prática? Nosso amigo com certeza o compreende sem que haja necessidade de tudo isso. Por certo, o senhor também é um asno, do mesmo modo que nosso pobre infeliz se imaginava. Sua encenação é bastante natural, acredite em mim.
— Mille pardons, Mam’selle! — replicou Monsieur De Kock, aquele que fora interpelado, — mil perdões! Não tive a intenção de ofendê-la. Mam’selle Laplace, Monsieur De Kock dará a si mesmo a honra de beber vinho com a senhora.
Então Monsieur De Kock inclinou-se, beijou sua própria mão com muita cerimônia e pôs-se a beber vinho com Mam’selle Laplace.
— Permita-me, mon ami, dirigiu-se a mim Monsieur Maillard, permita-me servir-lhe um pedaço desta vitela à la St. Menehoult. O senhor vai achá-la particularmente admirável.
Nesse instante, três garçons robustos acabavam de atingir sucesso em pôr com segurança sobre a mesa um prato enorme, ou, melhor ainda, um trincho, contendo o que supus ser o ‘monstrum, horrendum, informe, ingens, cui lumen ademptum.’4 Um exame mais minucioso, contudo, assegurou-me de que era apenas um pequeno bezerro assado, servido inteiro, apoiado em seus joelhos, com uma maçã na boca, do mesmo modo que fazem os ingleses para preparar uma lebre.
— Agradeço, mas, repliquei, para dizer a verdade, não sou particularmente atraído por vitela à la St. – como é mesmo? – por não achar que, de uma maneira geral, ela me caia bem. Vou, no entanto, trocar de prato e provar o coelho.
Havia alguns pratos de acompanhamento sobre a mesa, contendo o que parecia ser o tão comum coelho francês – um delicioso morceau, que recomendo.
— Pierre, exclamou o anfitrião, troque o prato deste senhor e dê-lhe uma fatia deste coelho au chat5.
— Este o quê? — disse.
— Coelho au chat.
— Bem, agradeço – pensando melhor, não o quero mais. Eu mesmo me servirei de um pouco de presunto.
Não se pode adivinhar o que se come, pensei comigo mesmo, à mesa desse povo de província. Não comerei nada de seu coelho au chat – e, do mesmo modo, tampouco seu gato au coelho.6
— Também, disse uma figura de aparência cadavérica, que estava numa ponta da mesa, retomando a conversa no ponto em que havia sido interrompida, também, entre outras esquisitices, tivemos, certa vez, um paciente que obstinadamente dizia ser um queijo de Córdoba, e saía por aí, com uma faca na mão, convidando seus colegas a provarem uma pequena fatia de sua coxa.
— Ele era um perfeito lunático, sem dúvida alguma, alguém interveio, mas não a ponto de ser comparado a certo indivíduo que todos, com exceção de nosso cavalheiro estrangeiro, conhecemos. Refiro-me ao homem que acreditava ser uma garrafa de champanhe e que sempre se desrolhava com um estouro e uma efervecência, da seguinte maneira.
E aqui o narrador, muito rudemente, em minha opinião, introduziu seu polegar direito na parte interna da bocheca esquerda, rapidamente retirou-o, produzindo um som similar ao de uma garrafa sendo desrolhada, e, logo depois, através de um ágil movimento da língua contra os dentes, criou agudo e efervescente silvo, que perdurou por vários minutos, numa imitação da espumosa borbulhagem do champanhe. Tal comportamento, como claramente notei, não agradou muito a Monsieur Maillard; mas ele nada disse, e a conversa foi reiniciada por um homem pequeno e delgado que usava grande peruca:
— Houve também um idiota, disse ele, que acreditava ser um sapo, com que, diga-se de passagem, muito se parecia, de fato. Como eu queria que o tivesse visto, senhor — e aqui o narrador se dirigiu a mim, — a naturalidade com que encenava lhe teria animado o espírito. Senhor, se não era mesmo aquele homem um sapo, posso apenas observar que é uma pena! Era assim seu coaxar: o... o... o... ok! o... o... o... ok! Era a mais bela nota do mundo, um si bemol; e quando, desta maneira, punha seus cotovelos sobre a mesa, depois de tomar um ou dos cálices de vinho, e abria bem a boca, desta maneira, e rolava os olhos, desta maneira, e piscava-os com excessiva rapidez, desta maneira, bem, meu senhor, atrevo-me a afirmar que certamente ficaria pasmo de admiração com o gênio de tal homem.
— Não tenho dúvida alguma, disse eu.
— Também, disse outra pessoa, também houve Petit Gaillard, que acreditava ser uma pitada de rapé, e sentia-se muito aflito por não conseguir se segurar entre seu indicador e seu polegar.
— E houve também Jules Desoulières, que tinha um gênio realmente singular e que acabou louco com a ideia de que era uma abóbora. Ele perseguia o cozinheiro para que dele fossem feitas tortas – algo que o cozinheiro, indignadamente, se recusava a fazer. Quanto a mim, de maneira alguma estou certo de que uma torta de abóbora à la Desoulières não teria sido um prato magnífico.
— O senhor me surpreende! — disse eu; olhei inquisidoramente para Monsieur Maillard.
— Ha! ha! ha! — riu-se ele, — he! he! he! hi! hi! hi! ho! ho! ho! hu! hu! hu! Excelente, de fato! Não deve se espantar, mon ami; nosso amigo é espirituoso – drôle7 – não deve interpretá-lo ao pé da letra.
— Também, disse outra pessoa do grupo, também houve Bouffon Le Grand, outra figura extraordinária, à sua maneira. Ele enlouqueceu de amor e acabou por imaginar que possuía duas cabeças. Uma delas, dizia ele, era a cabeça de Cícero; a outra, ele a imaginava ser composta: a de Demóstenes da testa até a boca e a de Lord Brougham da boca ao queixo. Não é impossível que estivesse equivocado, mas ele o convenceria de que estava correto, pois era um homem de grande eloquência. Tinha ele paixão absoluta por oratória e não conseguia deixar de ostentá-la. Por exemplo, costumava ele subir, desta maneira, sobre a mesa de jantar e – e – Nesse momento, um amigo do narrador, sentado ao seu lado, pôs-lhe a mão no ombro e murmurou-lhe ao ouvido algumas palavras; ele, então, repentinamente parou de falar e afundou-se em sua cadeira.
— Também, disse o amigo que havia murmurado, houve Boullard, o pião. Chamo-o pião pois, na verdade, foi dominado pela cômica mania, ainda que não completamente irracional, de que havia se transformado em um pião. O senhor teria se arrebentado de rir ao vê-lo girar. Ele sempre girava, horas a fio, ao redor de si, sobre o calcanhar, da seguinte maneira – assim –
Nesse momento, o amigo que há pouco ele interrompera com sua murmuração ao ouvido fez-lhe exatamente a mesma intervenção.
— Mas, nesse caso, berrou uma velha senhora, na máxima altura de sua voz, seu Monsieur Boullard era um louco, e um louco bem tolo, na melhor das hipóteses; pois quem, permita-me perguntar, alguma vez ouviu falar de um pião humano? Isso é absurdo. Madame Joyeuse era muito mais sensata, como bem se sabe. Ela, sim, tinha uma mania, mas impulsionada por bom senso, e Madame agradava a todos que tinham a honra de conhecê-la. Ela concluiu, após sólida ponderação, que, por algum acidente, havia se transformado num galo; mas, mesmo em sua condição de galo, comportava-se com decoro. Ela batia as asas com prodigiosa eficácia, assim – assim – assim – e, quanto a seu cacarejo, era ele delicioso! Có-có-ró-có-có! Có-có-ró-có-có! Có-có-ró-có-cóó-có-có-ró-có-có-cóóóóóó!
— Madame Joyeuse, queira se comportar! — interrompeu-a nosso anfitrião, furiosamente. — Aja como uma dama, ou retire-se da mesa imediatamente; faça sua escolha.
A senhora (e muito me surpreendi ao ouvi-la ser chamada de Madame Joyeuse, justamente após a descrição de certa Madame Joyeuse que ela mesma acabara de fazer) corou até as sobrancelhas e pareceu bastante envergonhada de tal reprimenda. Ela baixou a cabeça e nada respondeu. Mas outra mulher, mais nova, retomou o tema. Era a bela garota que eu conhecera na pequena sala ao chegar.
— Oh, Madame Joyeuse era uma louca! — ela exclamou. — Mas havia, afinal, muito bom senso na opinião de Eugénie Salsafette. Ela, que era uma jovem muito bela e extremamente modesta, julgava que os hábitos comuns de vestuário eram indecentes e sempre desejava vestir-se ficando por fora de suas roupas, ao invés de por dentro. Tratase, afinal, de algo muito fácil de fazer. Basta fazer assim – e depois assim – assim – assim e depois assim – assim – assim – e depois –
— Mon dieu! Mam’selle Salsafette! — foi o que gritou, ao mesmo tempo, uma dúzia de vozes. — O que está fazendo? Controle-se! Basta! Já compreendemos claramente como é que se faz! Pare! Pare! — e várias pessoas já estavam saltando de suas cadeiras para evitar que Mam’selle Salsafette se pusesse como a Vênus de Medici, quando a questão foi subitamente resolvida com eficácia devido a uma série de altos brados, ou gritos, vindos de alguma parte do corpo central do château.
Meus nervos, de fato, foram muito afetados por esses gritos; mas, quanto ao resto dos convivas, como senti pena deles! Nunca havia visto um grupo de pessoas sãs tão assustado em toda a minha vida. Ficaram todos pálidos como cadáveres e, encolhendo-se em suas cadeiras, sentaram-se, balbuciando e tremendo de medo; ficaram à escuta, esperando uma repetição do som. Foi ouvido novamente, mais intenso e aparentemente mais próximo; depois, uma terceira vez, muito intenso, e depois uma quarta vez, de vigor evidentemente reduzido. Com a aparente cessação do som, o ânimo do grupo foi imediatamente restituído, e, como antes, tudo voltou a ser estusiasmo e anedotas. Aventurei-me, ante as circunstâncias, a inquirir sobre a causa da inquietação.
— Uma simples bagatelle, disse Monsieur Maillard. — Estamos acostumados a essas coisas e damos pouca importância a elas. Os lunáticos, vez ou outra, põem-se a berrar em coro; um estimula o outro, como ocorre com um bando de cães durante a noite. Ocasionalmente, no entanto, sucede que os gritos em concerto são seguidos por um esforço simultâneo de fuga; nessas ocasiões, de fato ficamos receosos de algum perigo.
— E há quantos sob sua responsabilidade?
— No momento, não há mais que dez, ao todo.
— Principalmente mulheres, suponho.
— Oh, não! Todos eles são homens, e posso assegurar-lhe que são todos bem robustos.
— Não diga! Sempre supus que a maioria dos lunáticos pertencesse ao sexo frágil.
— Geralmente é assim, mas nem sempre. Algum tempo atrás, havia aqui cerca de vinte e sete pacientes e, dentre eles, não menos que dezoito eram mulheres; recentemente, contudo, as coisas mudaram bastante, como pode ver.
— Sim, mudaram bastante, como pode ver, interrompeu o senhor que havia
arruinado as canelas de Mam’selle Laplace.
— Sim, mudaram bastante, como pode ver! — retumbou, em coro, todo o grupo.
— Segurem suas línguas8, cada um dos senhores! — disse, enfurecido, meu anfitrião, ao que todo o grupo se manteve em profundo silêncio por quase um minuto. Quanto a uma das senhoras, ela obedeceu a Monsieur Maillard ao pé da letra; esticou para fora a língua, que era excessivamente alongada, e pôs-se a segurá-la resignadamente, com ambas as mãos, até o fim da reunião.
— E essa dama, disse eu a Monsieur Maillard, inclinando-me e dirigindo-me a ele num sussurro, essa boa senhora que há pouco nos falou e nos ofertou seu cacarejo – ela, presumo, é inofensiva, bem inofensiva, hum?
— Inofensiva! — exclamou, com sincera surpresa, — ora, ora, o que quer dizer?
— Apenas levemente amalucada? — disse eu, tocando minha cabeça. — Presumo que ela não seja particularmente – não perigosamente afetada, hum?
— Mon Dieu! O que imagina o senhor? Essa senhora, amiga antiga e pessoal, Madame Joyeuse, é tão sã quanto eu. Certamente tem suas excentricidades – mas, como sabe, todas as mulheres idosas – todas as mulheres muito idosas são excêntricas, em maior ou menor grau.
— Certamente, disse eu, certamente. Então todas as outras damas e cavalheiros –
— São meus amigos e guardas do recinto, interrompeu Monsieur Maillard, retesando-se com hauter, meus excelentes amigos e assistentes.
— O quê? Todos eles? — perguntei. — Todas as mulheres?
— Por certo, ele disse, nada poderíamos fazer sem as mulheres. São as melhores enfermeiras de lunáticos do mundo! Elas têm uma maneira própria, o senhor sabe; seus olhos brilhantes têm um efeito maravilhoso, algo como o fascínio da cobra, o senhor sabe.
— Certamente, disse eu, certamente! Comportam-se de maneira bastante singular, hum? São um pouco esquisitas, hum? O senhor não acha?
— Singular! Esquisitas! Ora, realmente pensa assim? De fato, não somos muito pudicos aqui no Sul; fazemos exatamente o que nos agrada, gozamos a vida, esse tipo de coisa, como sabe –
— Certamente, disse eu, certamente.
— Ademais, talvez este Clos-Vougeot suba à cabeça, o senhor sabe; um pouco forte, o senhor compreende, hum?
— Certamente, disse eu, certamente. A propósito, por acaso ouvi o senhor falar que o sistema que adotou no lugar do celebrado sistema de apaziguamento é de rigorosa severidade?
— De modo algum. O confinamento é rigoroso, mas, por outro lado, o tratamento, o tratamento médico, quero dizer, é bem mais agradável aos pacientes.
— E o novo sistema é uma invenção sua?
— Não completamente. Algumas partes são creditadas ao Professor Pixe, de que necessariamente já ouviu falar; e, do mesmo modo, há algumas modificações em meu projeto que atribuo com alegria ao célebre Penna, que, se não me engano, o senhor teve a honra de conhecer intimamente.
— Envengonho-me de confessar, repliquei, que nunca ouvi falar desses cavalheiros.
— Oh, céus! — exclamou meu anfitrião, arrastando abruptamente sua cadeira para trás e erguendo as mãos. — Não posso estar ouvindo corretamente! Não pode ter sido sua intenção dizer, hum, que nunca ouviu falar do erudito Doutor Pixe ou do célebre Professor Penna!’
— Sou forçado a admitir minha ignorância, repliquei; a verdade, acima de tudo, não deve ser violada. Contudo, sinto-me profundamente humilhado por não conhecer o trabalho de tais homens sem dúvida extraordinários. Procurarei seus escritos o mais rápido que puder e vou lê-los com muita atenção. Monsieur Maillard, o senhor realmente, tenho de confessar, o senhor realmente deixou-me com vergonha de mim mesmo!
De fato, eu assim estava.
— Não diga mais nada, meu bom e jovem amigo, disse ele cordialmente,
apertando minha mão. Acompanhe-me num cálice de Sauterne.
Bebemos. Os outros seguiram nosso exemplo, servindo-se generosamente. Eles proseavam, zombavam, riam, cometiam milhares de absurdos; os violinos guinchavam, o tambor ribombava, os trombones berravam como muitos touros de latão de Faláris – e a cena toda gradativamente se tornava pior, conforme o vinho a todos sobrepujava, convertendo-se, depois de um tempo, numa espécie de pandemônio in petto. Enquanto isso, Monsieur Maillard e eu, com algumas garrafas de Sauterne e Vougeot entre nós, continuávamos nossa conversa na máxima altura de nossas vozes. Uma palavra dita num tom habitual não teria mais chance de ser ouvida que a de um peixe nas profundezas das Cataratas do Niágara.
— O senhor, disse eu, gritando-lhe ao ouvido, mencionou, antes do jantar, algo sobre o perigo implicado no antigo sistema de apaziguamento. Do que se tratava?
— Sim, replicou, de fato havia, ocasionalmente, muito perigo. Não há previsão para os caprichos de um louco, e, em minha opinião, como também na do Doutor Pixe e do Professor Penna, nunca é seguro deixá-los livres, sem seres vigiados. Um lunático pode ser “apaziguado”, como se diz, por algum tempo, mas, no fim, é muito provável que se torne turbulento. Sua astúcia, além disso, é grande e notória. Se tem algo em mente, disfarça seu intento com maravilhosa prudência, e a habilidade com que dissimula sanidade apresenta, ao metafísico, um dos mais singulares problemas no estudo da mente. Quando um louco aparenta ser completamente são, já está mais do que na hora de metê-lo numa camisa de força.
— Mas o perigo, meu caro senhor, do que estava falando, de acordo com sua própria experiência durante seu comando desta casa – alguma vez já teve motivo prático para achar arriscada a liberdade, no caso do lunático?
— Aqui? De acordo com minha própria experiência? Bem, devo dizer que sim. Por exemplo, há não muito tempo, uma singular circunstância ocorreu nesta mesma casa. O “sistema de apaziguamento”, como sabe, estava em operação, e os pacientes ficavam em liberdade. Eles se comportavam notavelmente bem – tão bem que ninguém que fosse são poderia se dar conta de que um plano diabólico se desenvolvia a partir desse fato particular, o de que os sujeitos se comportavam notavelmente bem. E, com efeito, numa bela manhã, os guardas tiveram seus pés e mãos amarrados e foram jogados nas celas, como se eles fossem os lunáticos, pelos próprios lunáticos, que haviam usurpado o ofício de guarda.
— Não diga! Nunca ouvi nada tão absurdo em toda a minha vida!
— É fato. Tudo ocorreu por causa de um sujeito idiota, um lunático, que, de algum modo, meteu na cabeça que havia inventado um sistema de administração melhor que todos os outros até então – de administração lunática, quero dizer. Ele desejou verificar sua invenção, suponho – e, assim, persuadiu o resto dos pacientes a se associarem a ele numa conspiração pela destituição dos poderes reinantes.
— E ele teve sucesso?
— Sem dúvida. Os guardas e os guardados logo trocaram de posto. Mas não exatamente assim, já que os loucos, anteriormente, sempre ficavam soltos, mas os guardas foram imediatamente trancados em celas e tratados, lamento dizer, com muito desdém.
— Mas presumo que uma contra-revolução foi logo levada a cabo. Semelhante condição não poderia se manter por muito tempo. Os camponeses das redondezas, ou visitantes vindo conhecer o estabelecimento, teriam dado o alarme.
— Aí é que se engana. O cabeça dos rebeldes era esperto demais para isso. Ele não admitia visitantes – com a exceção, um dia, de um jovem senhor de aparência estúpida que ele não tinha razão de temer. Permitiu-lhe ver o local, apenas para variar, para divertir-se um pouco com ele. Depois de ludibriá-lo o suficiente, deixou-o partir e retomar seus negócios.
— E quanto tempo durou o reinado dos loucos?
— Ah, por muito tempo, de fato; por certo um mês – não sei precisar exatamente quanto mais tempo. Nesse período, os lunáticos tiveram uma divertida temporada, isso se pode assegurar. Livraram-se de suas roupas esfarrapadas e aproveitaram-se do guarda-roupa e das jóias da família. As adegas do château estavam bem estocadas de vinho; esses loucos do diabo sabem beber, e muito bem. Viveram bem, posso assegurar lhe.
— E o tratamento? Qual foi a espécie singular de tratamento que o líder dos rebeldes colocou em prática?
— Bem, quanto a isso, um louco não é necessariamente tolo, como já pude observar. É minha honesta opinião que seu tratamento era muito melhor que o tratamento que substituiu. Tratava-se, de fato, de um sistema de primeira: simples, asseado, sem apresentar problemas – na verdade, era delicioso, era – E então as observações de meu anfitrião foram interrompidas por uma série de gritos, similares àqueles que nos haviam desconcertado previamente. Desta vez, contudo, pareciam proceder de pessoas que rapidamente se aproximavam. — Oh, céus! — exclamei, — os lunáticos certamente escaparam.
— Temo que sim, replicou Monsieur Maillard, agora excessivamente pálido. Mal terminara sua sentença quando altos brados e imprecações foram ouvidos atrás das janelas, e, imediamente depois, tornou-se evidente que, do lado de fora, algumas pessoas esforçavam-se para adentrar no recinto. A porta era golpeada com o que parecia ser uma marreta, e as janelas eram sacudidas e puxadas com prodigiosa violência.
Seguiu-se uma cena de terrível confusão. Monsieur Maillard, para minha excessiva surpresa, jogou-se sob o aparador. Eu esperava mais resolução por parte dele. Os membros da orquestra, que, durante os últimos quinze minutos, pareciam embriagados demais para cumprir sua tarefa, puseram-se, todos de uma vez, em pé e, com seus instrumentos, arrastando-se para cima de sua mesa, atacaram, em comum acordo, o Yankee Doodle, que interpretaram, se não exatamente afinados, ao menos com uma energia sobre-humana, durante todo o tumulto. Enquanto isso, sobre a mesa de jantar principal, entre garrafas e cálices, saltou o cavalheiro que se contivera, com muita dificuldade, de sobre ela saltar anteriormente. Tão logo aterrisou, começou um discurso, que, sem dúvida, teria sido de alta categoria – se ao menos pudesse haver sido ouvido. No mesmo instante, o homem com as predileções ao pião pôs-se a girar pelo recinto, com imensa energia e com os braços esticados em ângulo reto ao corpo, de modo a realmente ter ares de um pião, derrubando todos que porventura estivessem em seu caminho. Então, ao escutar um incrível estouro, seguido de uma efervescência de champanhe, acabei por descobrir que procedia da pessoa que interpretara, durante o jantar, a garrafa de tão delicada bebida. O homemsapo, por sua vez, coaxava como se a salvação de sua alma dependesse de cada som que emitia. E, em meio a tudo isso, elevava-se, sobre todos os ruídos, um zurro contínuo de asno. Quanto a minha cara amiga, Madame Joyeuse, eu não poderia sentir mais pena dela, pois parecia terrivelmente perplexa. Tudo o que fazia, no entanto, era, num canto do recinto, ao lado da lareira, gritar incessantemente, na máxima potência de sua voz, seu ‘Cocoricocóóóóóóóóó!’
E então iniciou-se o clímax – a catástrofe do drama. Como resistência alguma, além de gritos, alaridos e cacarejos, era oferecida à invasão do grupo de fora, as dez janelas foram rápida e quase simultaneamente forçadas. Mas nunca esquecerei as emoções de assombro e horror com que observei saltar pela janela, sobre todos nós pêle-mêle9, lutando, esmagando, arranhando e bradando, um exército que julguei ser de Chimpanzés, Orangotangos, ou grandes babuínos negros do Cabo da Boa Esperança.
Fui terrivelmente golpeado – depois disso, rolei para baixo do sofá e fiquei imóvel. Depois de lá ficar por cerca de quinze minutos, no entanto, tempo em que prestei ouvidos ao que estava ocorrendo no recinto, cheguei a um dénouement10 satisfatório de tal tragédia. Parecia que Monsieur Maillard, ao falar-me do lunático que incitara seus colegas à rebelião, tinha meramente relatado suas própria façanhas. De fato, dois ou três anos antes, tal cavalheiro tinha sido o diretor do estabelecimento; contudo, acabou por ficar louco, tornando-se, então, um paciente. Esse fato era inédito ao conhecido que viajava comigo, que me havia apresentado a ele. Os guardas, em número de dez, tendo sido subitamente dominados, foram, primeiramente, besuntados com piche e, depois, cuidadosamente cobertos de penas, e assim foram encarcerados nas celas subterrâneas. Estiveram aprisionados por mais de um mês, período em que Monsieur Maillard generosamente lhes oferecia não apenas o piche e as penas (que constituíam seu ‘sistema’), mas também um pouco de pão e uma abundância de água. A última, através de uma bomba, lhes era jorrada diariamente. Por fim, um deles, escapando por uma cloaca, libertou todos os outros.
O “sistema de apaziguamento”, com importantes modificações, foi readotado no château. Contudo, não posso deixar de concordar com Monsieur Maillard: seu próprio sistema de “tratamento” era, realmente, de primeira. Como ele mesmo observou com exatidão, era “simples, asseado, sem apresentar problemas – nem mesmo o menor deles.”
Tenho apenas a acrescentar que, ainda que tenha procurado os trabalhos do Doutor Pixe e do Professor Penna por toda a Europa, não tive, até o presente dia, sucesso algum em meu empenho de obter ao menos um exemplar.11
1 Argumentação que consiste em provar algo através da explicitação do absurdo de sua negação. (N. do T.)
2 « Não se espantar com nada » (N. do T.)
3 Liga metálica formada por estanho, cobre e antimônio. (N. do T.)
4 “Monstro horrendo, disforme, gigantesco, privado de luz”. Citação da Eneida (Livro III), de Virgílio, referente a Polifemo, o ciclope cegado por Ulisses. (N. do T.)
5 Ao gato (N. do T.)
6 Cat au rabbit, no original. (N. do T.)
7 Cômico, engraçado, divertido. (N. do T.)
8 A escolha do verbo ‘segurar’, em detrimento de ‘conter’, foi feita de modo a possibilitar a cômica situação que segue (a senhora que se pôs a segurar sua língua).
9 De modo desordenado e confuso. (N. do T.)
10 Desfecho de um enredo. (N. do T.)
11 Doctor Tarr e Professor Fether, no original. A opção por ‘Pixe’, em vez de ‘Alcatrão’ (a mais justa tradução de ‘tar’), foi feita para dar maior sonoridade para o título e maior facilidade de mudança ortográfica (de ‘piche’ para ‘pixe’), mantendo, assim, o jogo criado por Poe (‘Tarr’ e ‘Fether’, no lugar de ‘tar’ e ‘feather’, respectivamente ‘alcatrão’ e ‘pena’ ou ‘pluma’.) (N. do