Este espaço se propõe a reunir material sobre loucura e todo o aparato que a envolve. Espaço para memória, videos, leituras, noticias e tudo o mais que nos cair em mãos em nossa tarefa diária de pensar sobre o tema.Também postaremos materiais que, ainda que não se relacionem diretamente com o tema, esclarecem o pensamento de autores importantes para se chegar lá. Doiduras, maluquices, vesânias de toda sorte serão bem vindas.

25 de out. de 2011

Van Gogh e o Hospital de Saint Paul em Saint-Rémy

 A Meadow in the Mountains - Le Mas de Saint-Paul

Garden of Saint-Paul Hospital, The

Le Mont Gaussier with the Mas de Saint-Paul

 Meadow in the Garden of Saint-Paul Hospital

Mountainous Landscape Behind Saint-Paul Hospital

 Pine Trees with Figure in the Garden of Saint-Paul Hospital

 Portrait of a Patient in Saint-Paul Hospital

Portrait of Doctor Felix Rey -  jan 1889

Portrait of Trabuc, an Attendant at Saint-Paul Hospital

  Self-Portrait with Bandaged Ear   -Jan 1889

 Self-Portrait with Bandaged Ear and Pipe

The Garden of Saint-Paul Hospital - 1889

 The Garden of Saint-Paul Hospital - december 1889

 The Garden of Saint-Paul Hospital with Figure

 The Garden of Saint-Paul Hospital,

The Garden of Saint-Paul Hospital,   october-1889

 The Stone Bench in the Garden of Saint-Paul Hospital

 Trees in the Garden of Saint-Paul Hospital..

 Trees in the Garden of Saint-Paul Hospital.

 Trees in the Garden of Saint-Paul Hospital

 View of the Church of Saint-Paul-de-Mausole

Wheat Field Behind Saint-Paul Hospital with a Reaper

Wheat Field Behind Saint-Paul Hospital

14 de out. de 2011

Só vim telefonar

"Só vim telefonar"

Gabriel García Márquez

Numa tarde de chuvas primaveris, quando viajava sozinha para Barcelona dirigindo um automóvel alugado, Maria de la Luz Cervantes sofreu uma pane no deserto dos Monegros. Era uma mexicana de 27 anos, bonita e séria, que anos antes tivera certo nome como actriz de variedades. Estava casada com um prestidigitador de salão, com quem ia se reunir naquele dia após visitar alguns parentes em Saragoça.
Depois de uma hora de sinais desesperados aos automóveis e caminhões que passavam directo pela tormenta, o chofer de um ónibus destrambelhado compadeceu-se dela. Mas avisou que não ia muito longe.
- Não importa - disse Maria. - Eu só preciso de um telefone.
Era verdade, e só precisava para prevenir seu marido que não chegaria antes das sete da noite. Parecia um passarinho ensopado, com um agasalho de estudante e sapatos de praia em abril, e estava tão atordoada por tudo que esqueceu de levar as chaves do automóvel. Uma mulher que viajava ao lado do chofer, de aspecto militar mas de maneiras doces, deu-lhe uma toalha e uma manta, e abriu espaço para ela ao seu lado. Depois de mais ou menos se secar, Maria sentou-se, enrolou-se na manta e tentou acender um cigarro, mas os fósforos estavam molhados.
A vizinha de assento deu-lhe fogo e pediu um cigarro dos poucos que estavam secos. Enquanto fumavam, Maria cedeu à vontade de desabafar e sua voz soou mais que a chuva e o barulho da lataria do ónibus.
A mulher interrompeu-a com o dedo nos lábios.
- Estão dormindo - murmurou.
Maria olhou por cima do ombro e viu que o ónibus estava ocupado por mulheres de idades incertas e condições diferentes que dormiam enroladas em mantas iguais à dela. Contagiada por sua placidez, Maria enroscou-se no assento e abandonou-se ao rumor da chuva. Quando despertou era de noite e o aguaceiro havia se dissolvido num sereno gelado.
Não tinha a menor ideia de quanto tempo havia dormido nem em que lugar do mundo estavam. Sua vizinha de assento tinha uma atitude alerta.
- Onde estamos? - perguntou Maria.
- Chegamos - respondeu a mulher.
O ónibus havia entrado no pátio empedrado de um edifício enorme e sombrio que parecia um velho convento num bosque de árvores colossais. As passageiras, iluminadas apenas por um farol do pátio, permaneceram imóveis até que a mulher de aspecto militar as fez descer com um sistema de ordens primárias, como em um jardim-de-infância. Todas eram mais velhas, e moviam-se com tal parcimónia na penumbra do pátio que pareciam imagens de um sonho. Maria, a última a descer, pensou que eram freiras. Pensou menos quando viu várias mulheres de uniforme que as receberam na porta do ónibus, e cobriam suas cabeças para que não se molhassem, e as colocavam em fila indiana, dirigindo-as sem falar com elas, com palmas rítmicas e peremptórias.
Depois de se despedir de sua vizinha de assento, Maria quis devolver-lhe a manta, mas ela falou que cobrisse a cabeça para atravessar o pátio e que a devolvesse na portaria.
- Será que lá tem telefone? - perguntou Maria.
- Claro - disse a mulher. - Lá mesmo eles mostram.
Pediu a Maria outro cigarro, e ela deu o resto do maço molhado. "No caminho eles secam", disse.
A mulher fez adeus com a mão, e quase gritou:
"Boa sorte.", O ónibus arrancou sem dar tempo para mais nada.
Maria começou a correr para a entrada do edifício.
Uma guarda tentou detê-la batendo palmas enérgicas, mas teve que apelar para um grito imperioso:
"Eu disse alto!", Maria olhou por baixo da manta, e viu uns olhos de gelo e um dedo inapelável indicando a fila. Obedeceu. Já no saguão do edifício separou-se do grupo e perguntou ao porteiro onde havia um telefone. Uma das guardas fez com que ela voltasse para a fila dando-lhe palmadinhas nas costas, enquanto dizia com modos muito suaves:
- Por aqui, gracinha, o telefone é por aqui.
Maria seguiu com as outras mulheres por um corredor tenebroso, e no final entrou em um dormitório colectivo onde as guardas recolheram as mantas e começaram a repartir as camas. Uma mulher diferente, que Maria achou mais humana e de hierarquia mais alta, percorreu a fila comparando uma lista com os nomes que as recém-chegadas tinham escrito num cartão costurado no sutiã. Quando chegou na frente de Maria surpreendeu-se que ela não levasse a identificação.
- É que só vim telefonar - disse Maria.
Explicou-lhe com muita pressa que seu automóvel havia quebrado na estrada. O marido, que era mago de festas, estava esperando por ela em Barcelona para cumprir três compromissos até a meia-noite, e queria avisá-lo que não chegaria a tempo para acompanhá-lo. Eram quase sete da noite. Ele sairia de casa dentro de dez minutos, e ela temia que cancelasse tudo por causa de seu atraso. A guarda pareceu escutá-la com atenção.
- Como é o seu nome? - perguntou.
Maria disse como se chamava com um suspiro de alívio, mas a mulher não encontrou seu nome depois de repassar a lista várias vezes. Perguntou alarmada a uma guarda, e esta, sem nada para dizer, sacudiu os ombros.
- É que eu só vim para telefonar - disse Maria.
- Está bem, beleza - disse a superiora, levando-a até a sua cama com uma doçura demasiado ostensiva para ser real -, se você se portar bem vai poder falar por telefone com quem quiser. Mas agora não, amanhã.
Alguma coisa aconteceu então na mente de Maria que a fez entender por que as mulheres do ónibus moviam-se como no fundo de um aquário. Na realidade, estavam apaziguadas com sedantes, e aquele palácio em sombras, com grossos muros de pedra e escadarias geladas, era na realidade um hospital de enfermas mentais. Assustada, escapou correndo do dormitório, e antes de chegar ao portão uma guarda gigantesca com um macacão de mecânico agarrou-a com um golpe de tigre e imobilizou-a no chão com uma chave mestra. María olhou-a de viés paralisada de terror.
- Pelo amor de Deus - disse. - Juro pela minha mãe morta que só vim telefonar.
Bastou ver sua cara para saber que não havia súplica possível diante daquela energúmena vestida de mecânico que era chamada de Herculina por sua força descomunal. Era a responsável pelos casos difíceis, e duas reclusas tinham morrido estranguladas com seu braço de urso-polar adestrado na arte de matar por descuido. O primeiro caso foi resolvido como sendo um acidente comprovado.
O segundo foi menos claro, e Herculina foi advertida e admoestada de que na próxima vez seria investigada a fundo. A versão corrente era que aquela ovelha desgarrada de uma família de sobrenomes grandes tinha uma turva carreira de acidentes duvidosos em vários manicómios da Espanha.
Para que Maria dormisse a primeira noite, tiveram que lhe injectar um sonífero. Antes do amanhecer, quando foi despertada pelo desejo de fumar, estava amarrada pelos pulsos e pelos tornozelos nas barras da cama. Ninguém acudiu aos seus gritos. Pela manhã, enquanto o marido não encontrava em Barcelona nenhuma pista de seu paradeiro, tiveram que levá-la à enfermaria, pois a encontraram sem sentidos num pântano de suas próprias misérias.
Não soube quanto tempo havia passado quando voltou a si. Mas então o mundo era um remanso de amor, e na frente de sua cama estava um ancião monumental, com um andar de plantígrado e um sorriso sedante, que com dois passes de mestre devolveu-lhe a alegria de viver. Era o director do sanatório.
Antes de dizer qualquer coisa, sem ao menos cumprimentá-lo, Maria pediu um cigarro. Ele deu, aceso, e também o maço quase cheio. Maria não pôde reprimir o pranto.
- Aproveite para chorar tudo que você quiser - disse o médico, com sua voz adormecedora.
Não existe melhor remédio que as lágrimas.
Maria desafogou-se sem pudor, como nunca havia conseguido com seus amantes casuais nos tédios de depois do amor. Enquanto a ouvia, o médico a penteava com os dedos, arrumava o travesseiro para que respirasse melhor, a guiava pelo labirinto de sua incerteza com uma sabedoria e uma doçura que ela jamais havia sonhado. Era, pela primeira vez em sua vida, o prodígio de ser compreendida por um homem que a escutava com toda a alma sem esperar a recompensa de levá-la para a cama. Após uma longa hora, desafogada até o fim, pediu-lhe autorização para telefonar para o seu marido.
O médico levantou-se com toda a majestade de seu cargo. "Ainda não, princesa", disse, dando em sua face o tapinha mais terno que ela jamais havia sentido. "Cada coisa tem sua hora.", Da porta, fez uma bênção episcopal, e desapareceu para sempre.
- Confie em mim - disse a ela.
Naquela mesma tarde, Maria foi inscrita no asilo com um número de série, e com um comentário superficial sobre o enigma da sua procedência e as dúvidas sobre sua identidade. Na margem ficou uma qualificação escrita a mão pelo director: agitada.
Tal como Maria havia previsto, o marido saiu de seu modesto apartamento do bairro de Horta com meia hora de atraso para cumprir os três compromissos.
Era a primeira vez que ela não chegava atempo em quase dois anos de uma união livre bem combinada, e ele entendeu o atraso pela ferocidade das chuvas que assolaram a província naquele fim de semana. Antes de sair deixou um recado pregado na porta com o itinerário da noite.
Na primeira festa, com todas as crianças disfarçadas de canguru, dispensou o truque-mor dos peixes invisíveis porque não conseguia fazê-lo sem a ajuda dela. O segundo compromisso era na casa de uma anciã de 93 anos, numa cadeira de rodas, que se vangloriava de haver celebrado cada um dos últimos trinta aniversários com um mago diferente.
Ele estava tão contrariado pela demora de Maria que não conseguiu se concentrar nos passes mais simples.
O terceiro compromisso era o de todas as noites num café-concerto das Ramblas, onde actuou sem inspiração para um grupo de turistas franceses que não conseguiram acreditar no que viam porque se negavam a crer na magia. Depois de cada representação telefonou para casa, e esperou sem ilusões que Maria atendesse. Na última já não pôde reprimir a inquietação de que algo de mau havia acontecido.
De volta para casa na caminhonete adaptada para as funções públicas viu o esplendor da primavera nas palmeiras do Paseo de Gracia, e foi estremecido pelo pensamento funesto de como poderia ser a cidade sem Maria. A última esperança se desvaneceu quando encontrou seu recado ainda pregado na porta. Estava tão contrariado que esqueceu de dar comida ao gato.
Só agora, ao escrever, percebo que nunca soube como era o nome dele na realidade, porque em Barcelona só o conhecíamos por seu nome profissional: o Mago Saturno. Era um homem de génio esquisito e com uma inabilidade social irredimível, mas o tacto e a graça que nele faziam falta sobravam em Maria. Era ela quem o guiava pela mão nesta comunidade de grandes mistérios, onde ninguém teria a ideia de ligar para alguém depois da meia-noite perguntando pela própria mulher. Saturno havia feito isso assim quando chegou e não queria recordar.
Por isso, naquela noite conformou-se com telefonar para Saragoça, onde uma avó meio adormecida respondeu sem alarma que Maria havia partido depois do almoço. Não dormiu mais de uma hora ao amanhecer.
Teve um sonho de pântano, no qual viu Maria com um vestido de noiva em farrapos e salpicada de sangue, e despertou com a certeza pavorosa de que havia tornado a deixá-lo sozinho, e agora para sempre, num vasto mundo sem ela.
Havia feito isso três vezes com três homens diferentes, ele inclusive, nos últimos cinco anos. Havia abandonado-o na Cidade do México seis meses depois de conhecê-lo, quando agonizavam de felicidade com um amor demente num quarto do bairro Anzures. Certa manhã, Maria não amanheceu em casa depois de uma noite de abusos inconfessáveis.
Deixou tudo que era dela, inclusive a aliança de seu casamento anterior, e uma carta na qual dizia que não era capaz de sobreviver ao tormento daquele amor desatinado. Saturno pensou que havia voltado ao seu primeiro marido, um condiscípulo da escola secundária com quem se casou às escondidas sendo menor de idade, e a quem abandonou por outro depois de dois anos sem amor. Mas não: havia regressado à casa de seus pais, e lá foi Saturno buscá-la a qualquer preço. Rogou sem condições, prometeu muito mais do que estava decidido a cumprir, mas tropeçou com uma determinação invencível.
"Existem amores curtos e amores longos", disse ela.
E concluiu sem misericórdia: "Este foi curto." Ele rendeu-se diante de seu rigor. No entanto, certa madrugada de um dia de Todos os Santos, ao voltar para o seu quarto de órfão depois de quase um ano de esquecimento, encontrou-a dormindo no sofá da sala com a coroa de flores de laranjeira e a longa cauda de espuma das noivas virgens.
Maria contou a verdade. O novo noivo, viúvo, sem filhos, com a vida resolvida e a disposição de se casar para sempre na igreja católica, havia deixado-a vestida de noiva esperando no altar. Seus pais decidiram fazer a festa do mesmo jeito. Ela acompanhou a brincadeira. Dançou, cantou com os mariachis, abusou da bebida, e num terrível estado de remorsos tardios foi procurar Saturno à meia-noite.
Ele não estava em casa, mas encontrou as chaves no vaso de flores do corredor, onde sempre as escondera. Daquela vez, foi ela quem se rendeu sem condições. "E agora até quando?", ele perguntou.
Ela respondeu com um verso de Vinicius de Moraes:
"O amor é eterno enquanto dura.", Dois anos depois, continuava sendo eterno.
Maria pareceu amadurecer. Renunciou a seus sonhos de actriz e consagrou-se a ele, tanto no ofício como na cama. No fim do ano anterior haviam assistido a um congresso de magos em Perpignan, e na volta conheceram Barcelona. Gostaram tanto que estavam ali fazia oito meses, e iam tão bem que haviam comprado um apartamento no bairro muito catalão de Horta, ruidoso e sem porteiro, mas com espaço de sobra para cinco filhos. Havia sido a felicidade possível, até o fim de semana em que ela alugou um automóvel e foi visitar seus parentes de Saragoça com a promessa de voltar às sete da noite da segunda. Ao amanhecer da quinta ainda não dera sinais de vida.
Na segunda-feira da semana seguinte a companhia de seguros do automóvel alugado telefonou para perguntar por Maria. "Não sei nada", disse Saturno. "Procurem em Saragoça." Desligou. Uma semana depois um guarda civil foi à sua casa com a notícia de que haviam achado o automóvel depenado, num atalho perto de Cádiz, a novecentos quilómetros do lugar em que Maria o abandonou. O policial queria saber se ela tinha mais detalhes do roubo. Saturno estava dando comida ao gato, e olhou-o apenas para dizer sem mais rodeios que não perdessem tempo, pois sua mulher havia fugido de casa e ele não sabia com quem ou para onde. Era tamanha sua convicção que o policial sentiu-se incomodado e pediu perdão pelas perguntas. O caso foi declarado encerrado.
O receio de que Maria pudesse ir embora outra vez havia assaltado Saturno na Páscoa em Cadaqués, onde Rosa Regàs os havia convidado para velejar.
Estávamos no Marítim, o populoso e sórdido bar da gauche divine no crepúsculo do franquismo, em volta de uma daquelas mesas de ferro com cadeiras de ferro onde só cabiam a duras penas seis e sentavam vinte.
Depois de esgotar o segundo maço de cigarros da jornada María percebeu que não tinha fósforos.
Um braço esquálido de pelos viris com uma pulseira de bronze romano abriu caminho através do tumulto da mesa e ofereceu-lhe fogo. Ela agradeceu sem olhar quem era, mas o Mago Saturno viu. Era um adolescente ósseo e lampinho, de uma palidez de morto e um rabo-de-cavalo de cabelos muito negros que chegavam até a sua cintura. As janelas do bar mal suportavam a fúria da tramontana da primavera, mas ele ia vestido com uma espécie de pijama de usar na rua, de algodão cru, e umas tamancas de lavrador.
Não tornaram a vê-lo até o fim do outono, numa pensão de mariscos de La Barceloneta, com o mesmo conjunto de saraça ordinária e uma longa trança em vez do rabo-de-cavalo. Cumprimentou-os como se fossem velhos amigos, e pelo modo com que beijou Maria, e pelo modo com que ela correspondeu, Saturno foi fulminado pela suspeita de que haviam andado se encontrando escondidos. Dias depois encontrou por acaso um nome novo e um número de telefone escritos na caderneta doméstica, e a inclemente lucidez dos ciúmes revelou-lhe de quem eram. O prontuário social do intruso acabou de liquidá-lo: 22 anos, filho único de ricos, decorador de vitrines da moda, com uma fama fácil de bissexual e um prestígio bem fundamentado como consolador de aluguel de mulheres casadas. Mas conseguiu superar tudo até a noite em que Maria não voltou para casa. Então começou a telefonar para ele todos os dias, primeiro a cada duas ou três horas, das seis da manhã até a madrugada seguinte, e depois cada vez que encontrava um telefone. O fato de que ninguém atendesse aumentava o seu martírio.
No quarto dia atendeu uma andaluza, que só ia fazer a faxina. "O sinhôzinho não está", disse, com um jeito vago o suficiente para enlouquecê-lo.
Saturno não resistiu à tentação de perguntar se por acaso a senhorita María não estava.
- Aqui não mora nenhuma Maria - disse a mulher. - O patrão é solteiro.
- Já sei disso - respondeu ele. - Não mora mas vai às vezes, não é?
A mulher se enfureceu.
- Mas quem está falando, porra?
Saturno desligou. A negativa da mulher pareceu-lhe uma confirmação a mais do que para ele já não era suspeita, era uma certeza ardente. Perdeu o controle. Nos dias seguintes telefonou em ordem alfabética para todos os conhecidos de Barcelona.
Ninguém informou nada, mas cada telefonema agravou sua infelicidade, porque seus delírios de ciúmes já eram célebres entre os madrugadores impenitentes da gauche divine, que respondiam com qualquer piada que o fizesse sofrer. Só então compreendeu até que ponto estava sozinho naquela cidade bela, lunática e impenetrável, na qual jamais seria feliz.
Pela madrugada, depois de dar comida ao gato, apertou o coração para não morrer, e tomou a determinação de esquecer Maria.
Depois de dois meses, Maria ainda não havia se adaptado à vida no sanatório. Sobrevivia mal e mal, comendo quase nada daquela pitança de cárcere com os talheres acorrentados à mesona de madeira bruta, e os olhos fixos na litografia do general Francisco Franco que presidia o lúgubre refeitório medieval. No começo resistia às horas canónicas com sua rotina palerma de matinas, laudes, vésperas, e a outros ofícios da igreja que ocupavam a maior parte do tempo. Negava-se a jogar bola no pátio do recreio e a trabalhar na oficina de flores artificiais que um grupo de reclusas mantinha com uma diligência frenética. Mas na terceira semana foi incorporando-se pouco a pouco à vida do claustro.
Afinal, diziam os médicos, todas começavam assim, e cedo ou tarde acabavam integrando-se na comunidade.
A falta de cigarros, resolvida nos primeiros dias por uma vigilante que os vendia a preço de ouro, tornou a atormentá-la quando acabou o pouco dinheiro que trouxera. Consolou-se depois com os cigarros de papel de jornal que algumas reclusas fabricavam com as guimbas recolhidas no lixo, pois a obsessão de fumar havia chegado a ser tão intensa quanto a do telefone. As pesetas exíguas que ganhou mais tarde fabricando flores artificiais permitiram a ela um alívio efémero.
O mais duro era a solidão das noites. Muitas reclusas permaneciam despertas na penumbra, como ela, mas sem se atrever a nada, pois a vigilante nocturna velava também no portão fechado com corrente e cadeado. Certa noite, porém, abrumada pela tristeza, María perguntou com voz suficiente para que sua vizinha de cama escutasse:
- Aonde estamos?
A voz grave e lúcida da vizinha respondeu:
- Nas profundas do inferno.
- Dizem que esta terra é de mouros - disse outra voz distante que ressoou no dormitório inteiro.
- E deve ser mesmo, porque no verão, quando há lua, ouvem-se cães ladrando para o mar.
Ouviu-se uma corrente nas argolas como uma âncora de galeão, e a porta se abriu. A cérbera, o único ser que parecia vivo no silêncio instantâneo começou a passear de um extremo a outro do dormitório. María se assustou, e só ela sabia por quê.
Desde sua primeira semana no sanatório, a vigilante noturna lhe havia proposto sem rodeios que dormisse com ela no quarto de guarda. Começou com um tom de negócio concreto: troca de amor por cigarros, por chocolates, pelo que fosse.
"Você vai ter de tudo", dizia, trémula. "Você vai ser a rainha.", Diante da recusa de María, a guarda mudou de método. Deixava papeizinhos de amor debaixo do travesseiro, nos bolsos do roupão, nos lugares menos imaginados. Eram mensagens de uma aflição dilacerante capaz de estremecer as pedras. Fazia mais de um mês que parecia resignada à derrota, na noite em que ocorreu o incidente no dormitório.
Quando se convenceu de que todas as reclusas dormiam, a guarda aproximou-se da cama de Maria, e murmurou em seu ouvido todo tipo de obscenidades ternas, enquanto beijava sua cara, o pescoço tenso de terror, os braços tesos, as pernas exaustas.
No fim, achando talvez que a paralisia de Maria não era de medo e sim de complacência, atreveu-se a ir mais longe. María deu-lhe então um golpe com as costas da mão que mandou-a contra a cama vizinha.
A guarda levantou-se furibunda no meio do escândalo das reclusas alvoroçadas.
- Filha da puta - gritou. - Vamos apodrecer juntas neste chiqueiro até que você fique louca por mim.
O verão chegou sem se anunciar no primeiro domingo de junho, e foi preciso tomar medidas de emergência, porque as reclusas sufocadas começavam a tirar durante a missa as batinas de lã.
María assistiu divertida ao espectáculo das enfermas peladas que as guardas tocavam pelas naves da capela como se fossem galinhas cegas. No meio da confusão, tratou de se proteger dos golpes perdidos, e sem saber como encontrou-se sozinha no escritório abandonado, e com um telefone que tocava sem cessar com uma campainha de súplica.
María respondeu sem pensar, e ouviu uma voz distante e sorridente que se distraía imitando o serviço de hora certa:
- São quarenta e cinco horas, noventa e dois minutos e cento e sete segundos.
- Veado - disse María.
Desligou divertida. Já ia embora, quando percebeu que estava deixando escapar uma ocasião irrepetível. Então discou seis números, com tanta tensão e tanta pressa, que não teve certeza de ser o número de sua casa. Esperou com o coração na boca, ouviu a campainha familiar com seu tom ávido e triste, uma vez, duas vezes, três vezes, e ouviu enfim a voz do homem de sua vida na casa sem ela.
- Alô?
Precisou esperar que passasse a bola de lágrimas que se formou na sua garganta.
- Coelho, minha vida - suspirou.
As lágrimas a venceram. Do outro lado da linha houve um breve silêncio de espanto, e a voz ensandecida pelos ciúmes cuspiu a palavra:
- Puta!
E desligou.
Naquela noite, num ataque frenético, Maria tirou da parede do refeitório a litografia do generalíssimo, arrojou-a com todas as suas forças contra o vitral do jardim, e desmoronou banhada em sangue. Ainda lhe sobrou raiva para enfrentar na porrada as guardas que tentaram dominá-la, sem conseguir, até que viu Herculina plantada no vão da porta, com os braços cruzados, olhando para ela. Rendeu-se. Ainda assim, foi arrastada até o pavilhão das loucas perigosas, foi aniquilada com uma mangueira de água gelada, e injectaram terebintina em suas pernas. Impedida de caminhar por causa da inflamação provocada, Maria percebeu que não havia nada no mundo que não fosse capaz de fazer para escapar daquele inferno.
Na semana seguinte, já de regresso ao dormitório comum, levantou-se na ponta dos pés e bateu na cela da guarda da noite.
O preço de Maria, exigido de antemão, foi levar um recado ao seu marido. A guarda aceitou, sempre que o trato fosse mantido no mais absoluto segredo. E apontou-lhe com um dedo inexorável.
- Se alguma vez alguém souber, você morre.
Desta forma o Mago Saturno foi parar no sanatório de loucas no sábado seguinte, com a caminhonete de circo preparada para celebrar o regresso de María. O director o recebeu em pessoa no seu escritório, tão limpo e arrumado quanto um barco de guerra, e fez um relatório afectuoso sobre o estado de sua esposa. Ninguém sabia de onde chegou, nem como nem quando, pois a primeira informação sobre sua entrada era o registro oficial ditado por ele mesmo quando a entrevistou. Uma investigação iniciada no mesmo dia não dera em nada. Porém, o que mais intrigava o director era como Saturno soube do paradeiro de sua esposa. Saturno protegeu a guarda.
- A companhia de seguros do automóvel me informou - disse.
O director concordou satisfeito. "Não sei como o seguro faz para saber tudo", disse. Deu uma olhada no expediente que tinha sobre sua escrivaninha de asceta, e concluiu:
- A única certeza é que seu estado é grave.
Estava disposto a autorizar uma visita com as devidas precauções se o Mago Saturno prometesse, pelo bem de sua esposa, restringir-se à conduta que ele indicasse. Sobretudo na maneira de tratá-la, para evitar que recaísse em seus acessos de fúria cada vez mais frequentes e perigosos.
- Que esquisito - disse Saturno. - Sempre foi de génio forte, mas de muito domínio.
O médico fez um gesto de sábio. "Há condutas que permanecem latentes durante muitos anos, e um dia explodem", disse. "Porém, é uma sorte que tenha caído aqui, porque somos especialistas em casos que requerem mão forte.", No final, fez uma advertência sobre a estranha obsessão de Maria pelos telefones.
- Deixe-a falar - disse.
- Fique tranquilo, doutor - disse Saturno com ar alegre. - É a minha especialidade.
A sala de visitas, mistura de cárcere e confessionário, era o antigo locutório do convento. A entrada de Saturno não foi a explosão de júbilo que ambos poderiam esperar. Maria estava de pé no centro do salão, junto a uma mesinha com duas cadeiras e um vaso sem flores. Era evidente que estava pronta para ir embora, com seu lamentável casaco cor de morango e sapatos sórdidos que havia ganho de esmola. Num canto, quase invisível, estava Herculina com os braços cruzados. María não se moveu ao ver o marido entrar nem mostrou emoção alguma na cara ainda salpicada pelos estragos do vitral.
Deram um beijo de rotina.
- Como você se sente? - perguntou ele.
- Feliz por você enfim ter vindo, coelho - disse ela. - Isto foi a morte.
Não tiveram tempo de sentar-se. Afogando-se em lágrimas, Maria contou as misérias do claustro, a barbárie das guardas, a comida de cachorro, as noites intermináveis sem fechar os olhos de terror.
- Já nem sei há quantos dias estou aqui, ou meses ou anos, mas sei que cada um foi pior que o outro - disse, e suspirou com a alma. - Acho que nunca voltarei a ser a mesma.
- Agora tudo isso passou - disse ele, acariciando com os dedos as cicatrizes recentes de sua cara.
- Eu continuarei a vir todos os sábados. E até mais, se o director permitir. Você vai ver como tudo dará certo.
Ela fixou nos olhos dele seus olhos aterrorizados.
Saturno tentou suas artes de salão. Contou, no tom pueril das grandes mentiras, uma versão adocicada dos prognósticos do médico. "Em resumo", concluiu, "ainda faltam alguns dias para você estar recuperada de vez.", María entendeu a verdade.
- Por Deus, coelho! - disse, atónita. - Não me diga que você também acha que estou louca!
- Nem pense nisso! - disse ele, tratando de rir. - Acontece que será muito mais conveniente para todos que você fique aqui algum tempo. Em melhores condições, é claro.
- Mas se eu já te disse que só vim telefonar! - falou María.
Ele não soube como reagir à obsessão temível.
Olhou para Herculina. Ela aproveitou a olhada para indicar em seu relógio de pulso que estava na hora de terminar a visita. María interceptou o sinal, olhou para trás, e viu Herculina na tensão do assalto iminente. Então agarrou-se no pescoço do marido gritando como uma verdadeira louca. Ele safou-se com todo o amor que pôde, e deixou-a à mercê de Herculina, que saltou sobre suas costas.
Sem dar-lhe tempo para reagir, aplicou em María uma chave com a mão esquerda, passou o outro braço de ferro em volta de seu pescoço, e gritou para o Mago Saturno:
- Vá embora!
Saturno fugiu apavorado.
Ainda assim, no sábado seguinte, já reposto do espanto da visita, voltou ao sanatório com o gato vestido como ele: a malha vermelha e amarela do grande Leopardo, o chapéu de copa e uma capa de volta e meia que parecia feita para voar. Entrou com a caminhonete de feira até o pátio do claustro, e ali fez uma função prodigiosa de quase três horas que todas as reclusas desfrutaram dos balcões, com gritos discordantes e ovações inoportunas. Estavam todas, menos María, que não só se negou a receber o marido, como sequer quis vê-lo dos balcões. Saturno sentiu-se ferido de morte.
- É uma reacção típica - consolou o director.
- Já passa.
Mas não passou nunca. Depois de tentar muitas vezes ver María de novo, Saturno fez o impossível para que recebesse uma carta, mas foi inútil.
Quatro vezes devolveu-a fechada e sem comentários.
Saturno desistiu, mas continuou deixando na portaria do hospital as rações de cigarros, sem ao menos saber se chegavam a María, até que a realidade o venceu.
Nunca mais se soube dele, exceto que tornou a se casar e que voltou ao seu país. Antes de ir embora de Barcelona deixou o gato meio morto de fome com uma namoradinha casual, que além disso se comprometeu a continuar levando cigarros para María. Mas também ela desapareceu. Rosa Regàs recordava ter visto a moça no Corte Inglês, há uns doze anos, com a cabeça rapada e a túnica alaranjada de alguma seita oriental, grávida até não poder mais. Ela contou-lhe que continuara levando cigarros para María, sempre que pôde, e resolvendo para ela algumas urgências imprevistas, até o dia em que só encontrou os escombros do hospital, demolido como uma lembrança ruim daqueles tempos ingratos. María pareceu-lhe muito lúcida na última vez em que a viu, um pouco acima do peso e contente com a paz do claustro. Naquele dia, levou-lhe também o gato, porque havia acabado o dinheiro que Saturno deixou para a comida.
Abril de 1978

In “Doze contos peregrinos”

7 de out. de 2011

II Seminário Temático de Antropologia e Saúde: Saúde e Marcadores Sociais

Seminário na Unesp de Marília reflete sobre antropologia e saúde
Evento que acontecerá em novembro recebe inscrição de trabalhos até 23 de outubro.

2 de out. de 2011

El Corazón Delatador - Edgar Allan Poe

      ¡Es verdad! Soy nervioso, terriblemente nervioso. Siempre lo he sido y lo soy. pero, ¿podría decirse que  estoy loco? La enfermedad había agudizado mis sentidos, no los había destruido ni apagado. Sobre todo, tenía el sentido del oído agudo. Oía todo sobre el cielo y la tierra. Oía muchas cosas del infierno. Entonces, ¿cómo voy a estar loco? Escuchen y observen con qué tranquilidad, con qué cordura puedo contarles toda la historia.
      Me resulta imposible decir cómo surgió en mi cabeza esa idea por primera vez; pero, una vez concebida,  me persiguió día y noche. No perseguía ningún fin. No había pasión. Yo quería mucho al viejo. Nunca me había hecho nada malo. nunca me había insultado. no deseaba su oro. Creo que fue su ojo. ¡Sí, eso fue! Tenía un ojo semejante al de un buitre. Era un ojo de un color azul pálido, con una fina película delante. Cada vez que posaba ese ojo en mí, se me enfriaba la sangre; y así, muy gradualmente, fui decidiendo quitarle la vida al viejo y quitarme así de encima ese ojo para siempre.
      Pues bien, así fue. Usted creerá que estoy loco. Los locos no saben nada. Pero debería haberme visto. Debería usted haber visto con qué sabiduría procedí, con qué cuidado, con qué previsión, con qué disimulo me puse a trabajar. Nunca había sido tan amable con el viejo como la semana antes de matarlo. Y cada noche, cerca de medianoche, yo hacía girar el picaporte de su puerta y la abría, con mucho cuidado. Y después, cuando la había abierto lo suficiente para pasar la cabeza, levantaba una linterna cerrada, completamente cerrada, de modo que no se viera ninguna luz, y tras ella pasaba la cabeza. ¡Cómo se habría reído usted si hubiera visto con qué astucia pasaba la cabeza! La movía muy despacio, muy lentamente, para no molestar el sueño del viejo. Me llevaba una hora meter toda la cabeza por esa abertura hasta donde podía verlo dormir sobre su cama. ¡Ja! ¿Podría un loco actuar con tanta prudencia? Y luego, cuando mi cabeza estaba bien dentro de la habitación, abría la linterna con cautela, con mucho cuidado (porque las bisagras hacían ruido), hasta que un solo rayo de luz cayera sobre el ojo de buitre. Hice todo esto durante siete largas noches, cada noche cerca de las doce, pero siempre encontraba el ojo cerrado y era imposible hacer el trabajo, ya que no era el viejo quien me irritaba, sino su ojo. Y cada mañana, cuando amanecía, iba son miedo a su habitación y le hablaba resueltamente, llamándole por su nombre con voz cordial y preguntándole cómo había pasado la noche. Por tanto verá usted que tendría que haber sido un viejo muy astuto para sospechar que cada noche, a las doce, yo iba a mirarlo mientras dormía.
      La octava noche, fui más cuidadoso cuando abrí la puerta. El minutero de un reloj de pulsera se mueve más rápido de lo que se movía mi mano. Nunca antes había sentido el alcance de mi fuerza, de mi sagacidad. Casi no podía contener mis sentimientos de triunfo, al pensar que estaba abriendo la puerta poco a poco, y él ni soñaba con el secreto de mis acciones e ideas. Me reí entre dientes ante esa idea. Y tal vez me oyó porque se movió en la cama, de repente, como sobresaltado. pensará usted que retrocedí, pero no fue así. Su habitación estaba tan negra como la noche más cerrada, ya que él cerraba las persianas por miedo a que entraran ladrones; entonces, sabía que no me vería abrir la puerta y seguí empujando suavemente, suavemente.
      Ya había introducido la cabeza y estaba para abrir la linterna, cuando mi pulgar resbaló con el cierre metálico y el viejo se incorporó en la cama, gritando:
      -¿Quién anda ahí? 
      Me quedé quieto y no dije nada. Durante una hora entera, no moví ni un músculo y mientras tanto no oí que volviera a acostarse en la cama. Aún estaba sentado, escuchando, como había hecho yo mismo, noche tras noche, escuchando los relojes de la muerte en la pared.
    Oí de pronto un quejido y supe que era el quejido del terror mortal. no era un quejido de dolor o tristeza. ¡No!Era el sonido ahogado que brota del fondo del alma cuando el espanto la sobreco ge. Yo conocía perfectamente ese sonido. Muchas veces, justo a medianoche, cuando todo el mundo dormía, surgió de mi pecho, profundizando con su temible eco, los terrores que me enloquecían. Digo que lo conocía bien. Sabía lo que el viejo sentía y sentí lástima por él, aunque me reía en el fondo de mi corazón. Sabía que él había estado despierto desde el primer débil sonido, cuando se había vuelto en la cama. Sus miedos habían crecido desde entonces. Había estado intentando imaginar que aquel ruido era inof ensivo, pero no podía. Se había estado diciendo a sí mismo: "No es más que el viento en la chimenea, no es más que un ratón que camina sobre el suelo", o "No es más que un grillo que chirrió una sola vez". Sí, había tratado de convencerse de estas suposiciones, pero era en vano. Todo en vano, ya que la muerte, al acercársele se había deslizado furtiva y envolvía a su víctima. Y era la fúnebre influencia de aquella imperceptible sombra la que le movía a sentir, aunque no veía ni oía, a sentir la presencia dentro de la habitación.
      Cuando hube esperado mucho tiempo, muy pacientemente, sin oír que se acostara, decidí abrir un poco, muy poco, una ranura en la linterna. Entonces la abrí -no sabe usted con qué suavidad- hasta que, por fin, su solo rayo, como el hilo de una telaraña, brotó de la ranura y cayó de lleno sobre el ojo del buitre.
      Estaba abierto, bien abierto y me enfurecí mientras lo miraba, lo veía con total claridad, de un azul apagado, con aquella terrible película que me helaba el alma. Pedro no  podía ver nada de la cara o del cuerpo, ya que había dirigido el rayo, como por instinto, exactamente al punto maldito. 
      ¿No le he dicho que lo que usted cree locura es solo mayor agudeza de los sentidos? Luego llegó a mis oídos un suave, triste y rápido sonido como el que hace un reloj cuando está envuelto en algodón. Aquel sonido también me era familiar. Era el latido del corazón del viejo. Aumentó mi furia, como el redoblar de un tambor estimula al soldado en batalla.
      Sin embargo, incluso en ese momento me contuve y seguí callado. Apenas respiraba. Mantuve la linterna inmóvil. Intenté mantener con toda firmeza la luz sobre el ojo. Mientras tanto, el infernal latido del corazón iba en aumento. Crecía cada vez más rápido y más fuerte a cada instante. El terror del viejo debe haber sido espantoso. Era cada vez más fuerte, más fuerte... ¿Me entiende? Le he dicho que soy nervioso y así es. Pues bien, en la hora muerta de la noche, entre el atroz silencio de la antigua casa, un ruido tan extraño me excitaba con un terror incontrolable. Sin embargo, por unos minutos más me contuve y me quedé quieto. Pero el latido era cada vez más fuerte, más fuerte. Creí que aquel corazón iba a explotar. Y se apoderó de mí una nueva ansiedad: ¡Los vecinos podrían escuchar el latido del corazón! ¡Al viejo le había llegado la hora! Con un fuerte grito, abrí la linterna y me precipité en la habitación. El viejo clamó una vez, sólo una vez. En un momento, lo tiré al suelo y arrojé la pesada cama sobre él. Después sonreí alegremente al  ver que el hecho estaba consumado. Pero, durante muchos minutos, el corazón siguió latiendo con un sonido ahogado. Sin embargo, no me preocupaba, porque el latido no podría oírse a través de la pared. Finalmente, cesó. El viejo estaba muerto. Quité la cama y examiné el cuerpo. Sí, estaba duro, duro como una piedra. Pasé mi mano sobre el corazón y allí la dejé durante unos minutos. No había pulsaciones. Estaba muerto. Su ojo ya no me preocuparía más.
      Si aún me cree usted loco, no pensará lo mismo cuando describa las sabias precauciones que tomé para esconder el cadáver. La noche avanzaba y trabajé con rapidez, pero en silencio. En primer lugar descuarticé el cadáver. le corté la cabeza, los brazos y las piernas.
      Después levanté tres planchas del suelo de la  habitación y deposité los restos en el hueco. Luego coloqué las tablas con tanta inteligencia y astucia que ningún ojo humano, ni siquiera el suyo, podría haber detectado nada extraño. No había nada que limpiar; no había manchas de ningún tipo, ni siquiera de sangre. Había sido demasiado precavido para eso. Todo estaba recogido. ¡Ja, ja!
      Cuando terminé con estas tareas, eran las cuatro... Todavía oscuro como medianoche. Al sonar la campanada de la hora, golpearon la puerta de la calle. Bajé a abrir muy tranquilo, ya que no había anda que temer. Entraron tres hombres que se presentaron, muy cordialmente, como oficiales de la policía. Un vecino había oído un grito durante la noche, por lo cual había sospechas de algún atentado. Se había hecho una denuncia en la policía, y ellos, los oficiales, habían sido enviados a registrar el lugar.
      Sonreí, ya que no había nada que temer. Di la bienvenida a los caballeros. Dije que el alarido había sido producido por mí durante un sueño. Dije que el viejo estaba fuera, en el campo. Llevé a los visitantes por toda la casa. Les dije que registraran bien. Por fin los llevé a su habitación, les enseñé sus tesoros, seguros e intactos. En el entusiasmo de mi confianza, llevé sillas al cuarto y les dije que descansaran allí mientras yo, con la salvaje audacia que me daba mi triunfo perfecto, colocaba mi silla sobre el mismo lugar donde reposaba el cadáver de la víctima.
    Los oficiales se mostraron satisfechos. Mi forma de proceder los había convencido. Yo me sentía especialmente cómodo. Se sentaron y hablaron de cosas comunes mientras yo les contestaba muy animado. Pero, de repente, empecé a sentir que me ponía pálido y deseé que se fueran. Me dolía la cabeza y me pareció oír un sonido; pero se quedaron sentados y siguieron conversando. El ruido se hizo más claro, cada vez más claro. Hablé más como para olvidarme de esa sensación; pero cada vez se hacía más claro... hasta que por fin me di cuenta de que el ruido no estaba en mis oídos.
    Sin duda, me había puesto muy pálido, pero  hablé con más fluidez y en voz más alta. Sin embargo, el ruido aumentaba. ¿Qué hacer? Era un sonido bajo, sordo, rápido... como el sonido de un reloj de pulsera envuelto en algodón. traté de recuperar el aliento... pero los oficiales no lo oyeron. Hablé má s rápido, con más vehemencia, pero el ruido seguía aumentando. Me puse de pie y empecé a discutir sobre cosas insignificantes en voz muy alta y con violentos gestos; pero el sonido crecía continuamente. ¿Por qué no se iban? Caminé de un lado a otro con pasos fuerte, como furioso por las observaciones de aquellos hombres; pero el sonido seguía creciendo. ¡Oh, Dios! ¿Qué podía hacer yo? Me salía espuma de la rabia... maldije... juré. balanceando la silla sobre la cual me había sentado, raspé con ella las tablas del suelo, pero el ruido aumentaba su tono cada vez más. Crecía y crecía y era cada vez más fuerte. Y sin embargo los hombres seguían conversando tranquilamente y sonreían. ¿Era posible que no oyeran? ¡Dios Todopoderoso! ¡No, no! ¡Claro que oían! ¡Y sospechaban! ¡Lo sabían! ¡Se estaban burlando de mi horror! Esto es lo que pasaba y así lo pienso ahora. Todo era preferible a esta agonía. Cualquier cosa era más soportable que este espanto. ¡Ya no aguantaba más esas hipócritas sonrisas! Sentía que debía gritar o morir. Y entonces, otra vez, escuchen... ¡más fuerte..., mas fuerte..., más fuerte!
      -¡No finjan más, malvados!  -grité - . ¡Confieso que lo maté! ¡Levanten esas tablas!... ¡Aquí..., aquí! ¡Donde está latiendo su horrible corazón!


                                                     El Corazón Delatador    -   Edgar Allan Poe